Há meses escrevi um post ao qual dei o título “O Mundo em Imagens”, uma reflexão sobre o mundo virtual criado pelas imagens do Ocidente. Hoje, ao escrever sobre o último filme de Alexander Sokurov, “Aleksandra”, 2007, que ontem passou no “European Film Festival, Estoril 07” escolho um título com as mesmas palavras, mundo e imagem, mas agora disponho na ordem inversa, pois inversos são os filmes de Sokurov em relação aos filmes Ocidentais. “Aleksandra” é mais um filme de Sokurov, em que se vê com a alma o mundo e os corpos que a habitam, pois Sokurov parte mais uma vez dos sentimentos, que é o que lhe mais interessa, e cria um outro mundo, o seu mundo inventado por si. O resultado é mais um filme que a partir dos sentimentos que vamos experimentando nos “reensina a ver e a ouvir”.
“Aleksandra” é filmado numa unidade militar russa na República da Chechénia, mas “Aleksandra” não é um filme de guerra nem das políticas russas no Cáucaso. “Aleksandra” fala-nos da pátria que Sokurov tanto ama e que agora vê quase perdida. “Aleksandra” é o nome da avó que vai visitar o neto um dos melhores oficiais da unidade militar.
Sokurov nasceu numa pequena aldeia da Sibéria que hoje já não existe. Construíram uma central hidroeléctrica e a aldeia ficou submersa, “se quisesse visitar o sítio onde nasci, teria de apanhar um barco, viajar através das águas, e olhar para o fundo”. Em Gorki, onde vivia, “havia muitas pessoas muito cultas, com muito talento, a vida na União Soviética sob o regime totalitário” conta Sokurov numa entrevista “tinha muitas particularidades. Uma delas era que as melhores qualidades das pessoas estavam escondidas dentro delas, eram pessoas muito bondosas e muito respeitáveis. Aprendi muito com elas”. Muitas vezes eram seres humanos que nada tinham a ver com a arte, “apenas seres humanos gentis, generosos, honestos e belos. E com uma sólida educação”. Julgo entender o que diz Sokurov. Há uns anos, quando visitei a exposição de Ilya Kabakov no Museu de Serralves, deparei com o álbum fotográfico de Yuda Blekher (1886-1966), que me deixou uma impressão semelhante à que Ilya descreve: “Conheci o tio Yuda casado com a irmã da minha mãe em 1956, quando fui pela primeira vez a Berdyansk. Depois a minha mãe foi viver para Berdyansk, e passei a visitar mais os meus tios. Numa dessas visitas vi pela primeira vez as fotografias do tio Yuda, que me impressionaram imenso, ele guardava-as numa pasta atada com fita de cor. Não foram só as fotografias em si que tiverem este efeito em mim, mas todo o conjunto: a forma como as montara em cartões e passe-partout coloridos de diferentes dimensões, e as moduras que desenhava à volta de cada fotografia”. Um talento escondido, dentro de uma pessoa boa e generosa.
Generosa, boa e culta, é a feirante, que Aleksandra encontra no dia que vai ao mercado da cidade mais próxima. A feirante convida-a a descansar em sua casa. A cidade é desoladora, as casas são ruínas que desafiam todas as leis da gravidade e pejadas de tiros de metrelhadora. No interior, enquanto bebe o chá que lhe oferecem, Aleksandra olha para o chão, pilhas de livros atados com cordas. Será que nunca mais se vão voltar a abrir?
Na unidade militar o confronto de duas gerações, a avó que visita o neto que não vê à sete anos. Numa noite enquanto o neto a penteia carinhosamente, a avó pergunta-lhe: o que estás a ler? nada, responde-lhe. O olhar da avó revela-nos o que pensa: uma geração perdida, sem saber e sem interesses, o único saber agora é manejar bem a arma, e ao longo do diálogo sentimos a despedida e a separação, “penso que o drama da morte é o drama da separação” disse uma vez Sokurov.
“Aleksandra” é mais um filme que nos faz sentir. Para Sokurov “o problema é o sentir. Sentir é o mais complicado. Deus deu-nos tantos sentimentos diferentes, tantos, tantos.”
Post sem imagens? Não porque ache que todos os posts tenham necessáriamente de ter imagens, mas porque Eric Baudelaire em “États Imaginés” faz emergir sentimentos semelhantes aos do filme. Talvez porque Abkhazie também já fez parte da ex-União Soviética.
Há dez anos Abkhazie conseguiu a independência da Georgia pelas armas, mas hoje Abkhazie continua sem ser reconhecida.
João Bénard da Costa em relação ao filme “Mãe e Filho” de Sokurov escreveu o seguinte “ Este era o filme que eu esperava. Este é o filme mais veemente dos anos 90. Este é o filme que nos reensina a ver e a ouvir. Este é o filme onde se concentram o visual e o auditivo. Este é o filme “da revelação do espanto, do cismar e do descobrimento”, como Sophia um dia disse de Maria Helena Vieira da Silva”. No jornal O Independente Agosto de 1998.
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