segunda-feira, junho 30, 2008

Horacio Fernández e a fotografia documental actual

O que é a fotografia documental? O que distingue a fotografia documental do fotojornalismo?

Ontem, Domingo, a Kgaleria, numa iniciativa que é de louvar, convidou Horacio Fernández para falar sobre “As linguagens actuais da fotografia documental”. Durante quatro horas e meia, num Domingo de escaldar, o público não arredou pé e nem deu pelo tempo passar, no fim, à laia de desabafo Fernández confessou, “quatro horas e meia é pouco tempo para mostrar o que queria”.

Fernández abordou as novas linguagens da fotografia documental, mas podemos recuar no tempo, à República de Weimar, para percebermos a essência do que Fernández nos transmitiu.

Terminada a primeira guerra mundial, com a abdicação do Kaiser, nascia na Alemanha, 1919, a primeira República, a República de Weimar. Os vencedores da guerra, assinavam em Versalhes um Tratado, cujas consequências depressa levaram a nova República para o caos. As pesadas indemnizações, que foram obrigados a pagar, conduziram o país a uma hiper inflação. Economicamente de rastos, a pobreza alastrou-se, e o nível de vida da sociedade alemã baixou. Nesses tempos difíceis, de pobreza generalizada, a violência política invadiu as ruas. Sequiosos de ordem e de um melhor nível de vida, foi fácil ao autoritário Hitler tomar o poder. O fotógrafo August Sander, coleccionador obsessivo, atraído pelas diferenças, fotografou todos os rostos da sociedade de Weimar. Nas suas fotografias, Sander informa-nos somente do ano e a profissão do fotografado.
Olhemos então para o notário que deixou Sander fotografa-lo com o seu cão à porta de sua casa.

August Sander, Notário
Com a sua postura direita, percebemos que o notário exerce uma profissão de elite, que impõe respeito e ele, uma pessoa digna de merecer esse respeito. Observemos agora os detalhes - o sobretudo, que é o mais eloquente. Pelo corte, percebemos que em tempos foi um casaco elegante, mas agora, já sem forma, o notário veste-o, porque provavelmente não pode comprar outro, mas preserva a postura, como se nada tivesse mudado. Para ele, a sua profissão continua a ser elitista, embora tudo à sua volta possa ter desmoronado.
Nesta fotografia o sobretudo dá-nos imensas “pistas”, como gosta de dizer Fernández, “pistas” que permitem a cada um de nós fazer a interpretação que quisermos, pois nada nos diz que o notário esteja à porta de sua casa, que o cão lhe pertence, que não tem um sobretudo melhor, que agora vive com menos posses porque o seu país vive momentos difíceis e que a profissão que ele exerce é para ele dignificante e que ele quer preservar que a respeitem. A riqueza do trabalho de Sander reside precisamente nesta abertura, em oposição, como diz Fernández, às fotografias fechadas do fotojornalismo, em que a ideia e a mensagem do fotógrafo é totalmente visível, não deixando qualquer margem ao observador. Sander não nos impõem a sua visão, antes nos deixa, “pistas”, “traços”, “rastos”, e é a partir deles, que cada um de nós constrói a realidade de uma sociedade, de um país, a verdadeira Alemanha na época da República de Weimar. Nos milhares de rostos que Sander fotografou, o observador é atraído pelas diferenças: pasteleiro, desempregado, deputado, artista, agricultores, os dois pugilistas…diferenças que tanto irritaram Hitler, que queria um país de uma só raça, uma raça superior - a raça ariana, e por isso mandou incendiar o seu estúdio.
Fernández falou e mostrou imagens da fotografia documental actual, não nos falou em Sander, nem era esperado que falasse, mas Sander deixa-nos as “pistas”, “traços”, “rastos”, para o documentário actual, para a fotografia de Guy Tillim, um dos fotógrafos contemporâneos que Fernández mais admira, e que no Congo, fotografa as “pistas”, “traços”, “rastos” da colonização Belga.

Guy Tillim, Congo Democratic Voting, Kinshasa, Julho 2006

Guy Tillim,Congo, Kinshasa suburb, Julho 2006
Em Joanesburgo, num outro trabalho, Tillim fotografa casas ocupadas deixadas pelos antigos proprietários. Sempre com a permissão de quem fotografa, em oposição às imagens tiradas à “sorralfa” de Cartier-Bresson e de tantos fotojornalistas, Tillim identifica o lugar e as pessoas, o resto fica para o observador divagar.
Nesta imagem, diz Fernández,

Guy Tillim,Mbulelo's bar, Joel Road, Berea, 2004
a rapariga vestida com a farda de uma boa escola destoa, sobretudo com este homem sentado à direita que parece um sem abrigo. Tillim não pediu à criança para se retirar, “poderia tê-lo feito, para mostrar melhor a pobreza, mas não o faz”. Tillim não nos impõem a sua visão, e a riqueza das suas fotografias, como em Sander, está na abertura que deixa ao observador.

A abordagem de Tillim, “um dos melhores fotógrafos documentais da actualidade”, diz Fernández, foi uma de muitas e diferentes abordagens possíveis da actual fotografia documental, como iremos ver num outro post.

Nota: Horacio Fernández é professor de fotografia na Faculdade de Belas Artes de Cuenca e entre 2004 e 2006 foi comissário geral de PHotoEspana mas também comissariou muitas outras exposições. Mexicana, Fotografia Moderna do México 1923-1949(IVAM Valência 1998), foi para mim uma das melhores que já vi até hoje.
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sábado, junho 28, 2008

Big Brother

Em 1929, para a exposição internacional de Barcelona, o Estado alemão encomendou a Ludwig Mies van der Rohe, um pavilhão para representar o país. A pergunta que Mies fez ao ministro - “o que se vai expor?”, teve como resposta: “nada, o pavilhão será a exposição”, e sem um programa, como era habitual, o pavilhão tornou-se na própria exposição. A estrutura, feita de paredes em vidro, era inovadora.

Desmantelado após a exposição mas reconstruído em 1992, quem olha do exterior, julga estar no interior, mas o reflexo nos vidros, com as nuvens, o céu e as árvores por trás, lembram o visitante que ele está no exterior. Este efeito misterioso, a impressão de se estar simultaneamente no interior e exterior do edifício, foi pouco notada à época. Os jornalistas profissionais que escreveram para as revistas da especialidade, não repararam nesta arquitectura virtual. O arquitecto José Quetglas, foi dos poucos que colocou a questão: “será que o pavilhão não tem interior, ou será que o interior é o exterior?”. Só anos mais tarde, 1947, quando o Museum of Modern Art (MoMA), dedica uma exposição a Mies, comissariada por Philip Johnson, o pavilhão foi então considerado como a mais bela obra de arquitectura do século.
E na América, a arquitectura em vidro, janelas que substituem as paredes, entrou na moda. Na sua famosa, Farnsworth House, (1946-50) Mies substituía as quatro paredes por vidros, mas a casa, rodeada por um grande jardim, estava resguardada dos olhares exteriores. Já nos subúrbios, as largas janelas em vidro, eliminavam toda e qualquer privacidade familiar, e o ver e ser visto, passou a fazer parte de vida quotidiana dos baby boomers.

Este foi o texto que comecei por escrever para o post anterior, a falta de privacidade sentida nestas casas nos subúrbios era associada à falta de privacidade que os habitantes da Unidade de Marselha de Le Corbusier reclamaram quando para lá foram viver. Mas a exposição “Film und Foto”, 1929, no mesmo ano da exposição de Barcelona, acabou por dominar com a sua “promenade architectural”.

Hoje recupero e regresso ao texto, porque ao pavilhão de Mies a ligação ao artista Dan Graham e ao fotógrafo Jeff Wall, é inevitável.

Dan Graham, sob a influência do pavilhão de Mies, constrói “Alteration to a Suburban House”, 1978, na sequência de “Homes for America” (1966-67), a sua primeira crítica aos novos subúrbios. Neste trabalho, Graham remove a fachada de uma casa de um subúrbio e substitui-a por uma enorme janela.

No interior, dividiu a frente e as traseiras com um espelho. O espectador na rua, entrava no interior e movia-se através do espelho na sala virtual, mas simultaneamente a paisagem suburbana, a estrada, o passeio, a relva, e as casas em frente estavam também presentes, reflectidas no vidro. O efeito, semelhante ao pavilhão de Mies, colocava o espectador em dois lugares, no exterior, o lugar real, e no interior, o lugar virtual. Por outro lado, o habitante, no interior da sua casa, via por efeito da duplicação no espelho, a rua, o passeio, a relva e as casas da frente. Para Graham, “what the huge window reveals is not a private space but a public representation of a convencional domesticity, an image of socially accepted normalcy” e a estrutura familiar da vida suburbana, tal como a estrutura das casas, era exposta agora a todos, o espaço privado era substituído por um espaço público, e nos subúrbios, os comportamentos passaram a ser ditados, não só pelos anúncios publicitários passados na televisão, mas pelos comportamentos dos vizinhos. Para Graham, a janela da casa é semelhante à janela de uma loja, onde o sonho da classe média americana, se vende como se fosse mais uma mercadoria.

Graham e Wall, respeitam-se mutuamente. Em 1980, Graham escreve um texto de uma fotografia de Wall, “The Destroyed Room”, 1978.

Jeff Wall,The Destroyed Room, 1978
Neste quarto, destruído deliberadamente por desconhecidos, a violência erótica é atenuada, segundo Graham, pela artificialidade da cena que Wall não esconde, e o espectador torna-se voyeur.

Em contrapartida, Wall, escreve no mesmo ano, um texto de sessenta páginas, sobre a obra “Alteration to a Suburban House”, a maqueta de Graham que nunca chegou a ser construída. Controlo e falta de privacidade, são para Wall, a tragédia que angustia o habitante destas casas. E no extenso texto, os efeitos do dia e da noite descritos, estão bem presentes em - Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999.

Jeff Wall, Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999
Wall vai buscar ao cinema o que ele chama de efeito cinematográfico - onde artifício e documento quase não se distinguem, e diz: “muitos são os filmes que nos dão uma sensação de irrealidade, mas que no final nos parecem reais como um documentário”. E é nesta ambivalência, entre um mundo que não é real, porque encenado, recriado a partir da sua imaginação e das suas memórias, como a limpeza em Morning Cleaning, que Wall compõe, através da fotografia digital, um mundo que nos parece mais real que a realidade.

Detalhe
A luz da manhã, ilumina o mármore rosa, e é para lá que primeiro olhamos. De dia, o pavilhão, com as suas paredes de vidro, controla a natureza - o fluxo cronológico do tempo dado pela amplitude da luz que incide na parede. Mas em Morning Cleaning, a opacidade e a rigidez da pedra mármore, que continua no exterior, é que nos faz julgar e misturar os dois espaços, o vidro, ensaboado, em contraste com a sua transparência natural, dá-nos uma imagem difusa da estátua que está no exterior.

Detalhe
Mas a verdadeira estranheza desta fotografia, não está nesta troca, de um vidro que deixa de ser reflector, transparente, mas nas cortinas, que recolhidas, quase passam desapercebidas.

Detalhe
Porque serão de veludo? Para aliviar a intensidade do sol não bastariam ser translúcidas? Se fechadas, a natureza que rodeia o pavilhão é afastada.
No texto, Wall refere que de noite, a natureza retira-se, deixa-se de reflectir no vidro, quando, durante o dia, está sempre omnipresente. Ao iluminar o espaço com luz artificial, o interior da casa transforma-se num gigantesco espelho, e o habitante vê-se reflectido em todas as superfícies, reflexão de reflexão, dependendo da intensidade da luz, como um fantasma que atormenta e angustia o habitante. A transformação do vidro em espelho só é quebrada com o correr das cortinas, e o fechar das cortinas à noite é já em si a expressão da ansiedade de quem habita a casa.

À medida que os anos passam, o controlo e a exposição da nossa vida privada é cada vez maior. Não é de estranhar, nem é por acaso, diz a arquitecta Beatriz Colomina, que o programa televisivo Big Brother foi criado na Holanda, onde as casas por tradição, estão completamente abertas para o exterior.
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segunda-feira, junho 23, 2008

"O melhor dos mundos"

Na Primavera de 1929, a nova fotografia alemã, apelidada de Nova Visão, atingia a sua apoteose com a exposição “Film und Foto” em Estugarda. A mobilidade do olhar do fotógrafo moderno, a premissa deste novo movimento, é bem visível na capa do catálogo que acompanhou a exposição: “Es kommt der neue Fotograf!” de Werner Gräff.

A fotografia deste homem, inserida no círculo, (signo universal do movimento), de uma objectiva, é tirada de um ângulo inédito para ressaltar a ideia do fotógrafo moderno, dinâmico, que anda e se movimenta na cidade. László Moholy-Nagy, um dos impulsionadores do movimento, tira da janela de um prédio esta fotografia, no primeiro dia do ano de 1930.

Moholy-Nagy, "7 AM(New Year's Morning), 1930
Nesta rua, quase deserta, (são 7 horas da manhã como nos informa a legenda), padeiro e casal, que certamente regressam de uma festa, movimentam-se com toda a liberdade, não respeitando a geometria imposta da cidade. Em oposição a tanta liberdade, André Kertész, em Tóquio, fotografa estes peões, que mesmo debaixo de chuva, fazem fila e seguem a seta.

André Kertész, "Jour de pluie, Tokyo", 1968
Em 1965, o fotógrafo, Volkmar Wentzel, da revista National Geographic, olhando com a mesma perspectiva das fotografias anteriores, de cima para baixo, tira estas duas fotografias de Lisboa.


A primeira, nas avenidas novas, os peões caminham nos passeios rectilíneos, não fora a senhora com a criança pela mão, que prefere não usar a passadeira, a cidade moderna parece impor a sua ordem. Mas nesta outra fotografia, uma vista do Parque Eduardo VII, todos, excepto o homem vestido de negro, ao fundo à direita, preferem deambular pela relva em lugar dos caminhos rectilíneos que atravessam o parque, também este demasiado geométrico.

E aqui fazemos um paralelo com a arquitectura, através da célebre “promenade architecturale” de Le Corbusier, que o Museu Berardo apresenta agora uma retrospectiva. E na exposição, num ecrã, é passado o filme “Architecture d’aujourd’hui”, 1930, de Pierre Chenal. Chenal filma várias moradias de Le Corbusier para acentuar as vistas de diferentes perspectivas. Se no terraço da Villa Church, duas mulheres e um homem fazem a sua ginástica moderna ao ar livre, o desporto era visto à época como uma actividade física do homem moderno, na Villa Savoye em Poissy,1929, uma mulher, conduz-nos pela rampa, num circuito que nos obriga a uma visão em movimento, tal como neste desenho de Herbert Bayer.

E no cimo, no terraço, esta janela enquadra, tal como numa fotografia, a paisagem circundante.

O filme traduz, de forma magnífica, a experiência concreta da visão em movimento, onde a perspectiva tradicional, é preterida, por esta “promenade architecturale”, de um olho que caminha, tal como o olho do fotógrafo na cidade. A arquitecta Beatriz Colomina,foi a primeira a insistir no cruzamento da fotografia com a arquitectura moderna, ao enfatizar a importância do modelo fotográfico em Le Corbusier: “O espaço não é feito de muros, mas de imagens, que para Le Corbusier é a actividade primordial numa casa. A casa é um dispositivo para olharmos o mundo, um mecanismo de visão…um sistema para captar imagens…”.
Mas a “promenade architecturale” extravasa o interior dos edifícios,

Projecto em construção Epul-Jovem, Atelier Promontório, Lisboa 2008
a arquitectura aprecia-se enquanto andamos,

porque é na caminhada que o nosso olho é estimulado pelas variações inesperadas que o edifício nos oferece, provocando muitas vezes o espanto com os diferentes enquadramentos.

Olhando um edifício de frente, mesmo de um ponto de vista privilegiado, num olhar limitado às regras da perspectiva tradicional,

o edifício torna-se estático, e nem as sombras das varandas substituem a riqueza das impressões da caminhada.
Mas o homem-bicho gosta de se rever nas coisas, e no campo, longe das cidades, a agricultura parcelara a natureza, mas fizera-o de modo orgânico, e o homem não se queixou. Nas cidades, arquitectos e urbanistas imaginam a cidade ideal e nada é mais passageiro do que as utopias. A cidade radiosa, ideal, de Le Corbusier, de grandes blocos verticais implantados em zonas verdes, seriam a solução do problema habitacional.

Exposição Le Corbusier, Museu Berardo
O homem moderno, que sabe o que quer e para onde vai, caminha a direito, em linha recta, à semelhança do homem da capa do catálogo. Geometria e ordem prometiam rigor, não a salgalhada romântica das cidades históricas italianas.

Giovanni Chiaramonte, Gibelina, 1989

Giovanni Chiaramonte, Rieti, 1990
Mas as vidas humanas não são traçadas a régua e esquadro, o que a arquitectura dita, as ciências sociais rejeitam, e os bairro ideais, “o melhor dos mundos”, como vendiam os postais à época,refotografados por Mathieu Pernot,


são hoje, através das implosões, transformados em pó, e recomeça-se do início.

Mathieu Pernot,exposição Utopia, Museu Berardo

Numa outra sala, a exposição - Utopia, no mesmo Museu Berardo, co-produzida com a PhotoEspaña 2008, o islandês Arni Haraldsson, cujo trabalho fotográfico se centra na localidade de Firminy, em França, cidade onde Le Corbusier construiu vários edifícios, e onde a igreja de Saint-Pierre, ficou inacabada,

Arni Haraldsson, Incomplete Church of Saint-Pierre (1960-74) de Le Corbusier, 1999-01
“o espaço que não é feito de muros mas de imagens”, não é esquecido.

Arni Haraldsson,Stairwell Window, Unité d'Habitation, 1999
Mas no presente, o que Haraldsson nos transmite deste passado recente, é o desencanto e o fim destas cidades definidas pelos princípios modernistas da vida urbana,

Arni Haraldsson,Unité d'Habitation, 1999

Arni Haraldsson, Unité d'Habitation, 1999
e os corredores da Unidade de Habitação de Firminy, iguais em todos os pisos, fazem lembrar os corredores de uma prisão.

Arni Haraldsson, Internal Street, North Wing,Unité d'Habitation, 1999
Diz a sabedoria popular, que Deus escreve direito por linhas tortas e enquanto o homem não for projectado em forma de cubos e as mulheres em forma de esferas – à maneira da Bauhaus – nada está em condições de funcionar, e os peões, que se passeiam na relva no parque em Lisboa sabem-no melhor que ninguém.
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quinta-feira, junho 19, 2008

De regresso à Irlanda

Os Irlandeses votaram “não” ao Tratado de Lisboa. Em Bruxelas, todos olham para a ilha, e a opção implícita é que a Irlanda tem de decidir rapidamente se quer ou não quer sair da União Europeia.
Em 1952, Henri Cartier-Bresson fotografava os irlandeses de binóculos, não a olhar para Bruxelas, mas para uma corrida de cavalos.
Henri Cartier-Bresson, Horse Racing, Thurles, County Tipperary, 1952

Vinte e quatro anos depois, em 1976, já a Irlanda pertencia à CEE, é a vez de Josef Koudelka fotografar os Irlandeses desta vez de costas, não para Bruxelas, mas para nós espectadores.
Josef Koudelka, Irlanda, 1976

Em 1 de Janeiro de 1973, Reino Unido e Irlanda, entravam para a então denominada Comunidade Económica Europeia, CEE. A Irlanda, era, à época, um dos países menos desenvolvidos e mais pobre da Europa, hoje, com o quinto maior PIB (produto interno bruto) per capita do mundo, é apontada como exemplo do milagre económico e social dos últimos anos.

Os fotojornalistas da mítica agência Magnum encantaram-se com a Irlanda, e se o país serve de exemplo ao mundo em termos económicos e sociais, ao nível da fotografia, a Irlanda serve na perfeição para ilustrar a evolução e as tendências do fotojornalismo actual.

Na década de 50, o “momento decisivo” de Cartier-Bresson, influenciava uma geração, e ainda hoje, não é raro ver a sua influência. No ano passado, a propósito do relatório da Oxfam, sobre a urgente ajuda humanitária ao Iraque, esta fotografia de Kimimasa Mayama da Reuters ilustrava o artigo publicado no Público.
No Iraque, Mayama, via as traseiras da Gare de St. Lazare de Cartier-Bresson.
Sem flash, sem tripé, sem truques de laboratório, Cartier-Bresson definia as regras da reportagem fotográfica, o mundo, para que as injustiças acabassem, tinha que ser revelado tal qual era, sem artifícios nem maquilhagens, e a fotografia era perfeita como garante da verdade. E à “sorralfa”, como traduziu o nosso Gérard Castello Lopes, Cartier-Bresson, movia-se discretamente no meio das multidões, fazendo tudo para não destruir com a sua presença, qualquer réstia de naturalidade, a fotografia servia os propósitos humanistas. Na Irlanda, as suas imagens não fogem à regra, e tanto se enternece com estas crianças
Henri Cartier-Bresson, Dublin, 1952
que brincam nas ruas de Dublin, como compõe de forma magnifica o caos da realidade no limitado quadrado da fotografia.
Henri Cartier-Bresson, Munster, 1952
O sul, profundamente católico, não escapa a Cartier-Bresson, e no parque de St.Stephen em Dublin tira esta fotografia de uma freira de costas que mais parece ter saído de um filme de Louis de Funès.
Henri Cartier-Bresson, St. Stephen's Green, Dublin, 1952
Nesses anos, o preto e branco dominava, mas Inge Morath, deixa-se cativar pelo colorido dos feirantes e das carroças,
Inge Morath, Tinker carts line up on the night before the opening of the Puck Fair, County Kerry, 1954
que logo pela alvorada, fazem fila para abrirem a Puck Fair em County Kerry.
Inge Morath, Puck Fair, County Kerry, 1954

“Paralysis”, foi como James Joyce descreveu o país onde cresceu, e a sua Dublin, 1904, de “trams” ainda puxados a cavalo, pouco ou nada parece ter mudado - não fossem os autocarros de dois andares, que Morath fotografou, julgaríamos estar perante uma descrição de Joyce.
Inge Morath, Parnell Square, Dublin, 1954

Na década seguinte, Elliott Erwitt, Bruce Davidson, Erich Hartmann, continuaram a fotografar uma Irlanda pobre, atrasada e católica, símbolo de uma sociedade conservadora, onde nada parecia mudar.
Elliott Erwitt, 1962
Bruce Davidson, Duffy Circus, 1967
Erich Hartmann, Graffiti near Abbey Theatre, Dublin, 1964
Os foto ensaios, que enchiam as revistas da época, ilustradas pelos fotógrafos, hoje apelidados de humanistas pela crítica, André Rouillé, Dominique Baqué,…viviam na ilusão de conseguir mudar o mundo, para um mundo melhor, mais humano.
O mito do repórter fotográfico, atinge o zénite com a guerra do Vietname, mas a impiedosa televisão, que invadia todos os lares, acabava rapidamente com a fotografia de reportagem, e muitas foram as revistas de grande tiragem que tiveram que encerrar por falta de publicidade. Ainda a guerra do Vietname não acabara, na Irlanda, uma guerra, com o Reino Unido,
Abbas, Belfast, 1972
que duraria vários anos, entre protestantes e católicos do Norte, foi, na Europa, palco do testemunho fotográfico em directo. O Domingo Sangrento, Janeiro 1971, em Derry/Londonderry não lhes escapou.
Ian Berry, Derry/Londonderry, 1971
Bruno Barbey, Street-fighting against British soldiers, DerrY/Londoderry, 1971
Leonard Freed, Derry/Londoderry, 1971
Mas quem vê cinco, seis fotografias dessa guerra violenta, não julga ter visto todas?
Philip Jones Griffiths, Belfast, 1973
Chris Steele-Perkins, West Belfast, 1979
(Seguindo a sugestão deixada na caixa de comentários, lá mais em baixo, vou aqui linkar os U2 em Sunday Bloody Sunday).
Marc Riboud, em contraste, preferiu, ainda nos finais dos anos 70, testemunhar a vida da classe aristocrata irlandesa, na caça,
Marc Riboud, County Down, 1978
em festas
Marc Riboud, County Down, 1978
mas também nas suas imagens registou a decadência dessa mesma classe.
Marc Riboud, County Wicklow, 1978

Com o declínio das reportagens, o “momento decisivo”, associado a uma fotografia de acção, tornou-se desadequado, e a fotografia humanista, do trabalho, do amor, da amizade, da infância, das festas…deu lugar à fotografia humanitária, da catástrofe, do sofrimento, do desemprego, da penúria da doença.
Stuart Franklin, Unemployed boys,Strabane, 1985
Donovan Wylie, Young unemployed man in kitchen, Athlone, County Westmeath, 1988
Eli Reed, unemployed father taking his daughter to the school bus, Derry/Londonderry, 1991
Em oposição à esperança dos fotógrafos da década anterior, os fotojornalistas da Magnum, desiludidos, fotografaram uma Irlanda impotente, onde a revolta se transformou em resignação.
Donovan Wylie, Amusement arcade, County Offaly, 1988
Martin Parr, Ballymun, Dublin, 1986
Harry Gruyaert, County Kerry, 1983
Peter Marlow, Lisdoonvarna, County Clare, 1982
Eli Reed, Derry/Londonderry, 1991
Martine Franck, A cemetery of stolen cars in the Darndale Housing Estate, Dublin, 1993
Bruno Barbey, County Galway, 1991
Carl De Keyzer, Dublin, 2005
Marin Parr, County Sligo, 1996
E dos anos 80 até à actualidade, a Irlanda é vista como um país, vazio, paralisado, conservador, onde o homem é vítima da sociedade, onde nem mesmo os ricos escapam, com o seu olhar alienado, bêbado, à objectiva de Stuart Franklin.
Stuart Franklin, Trinity College Ball, Dublin, 2003

Os fotojornalistas da Magnum, vêem-se, como refere Brigitte Lardinois, directora do Museum of Modern Art de Dublin, “as educators rather than as illustrators”. Nem mesmo o único fotógrafo irlandês da Magnum, Donovan Wylie, atraído pela uniformidade que encontrou em “The Maze Prison”, deu uma outra visão do país.
Donovan Wylie, The Maze Prison, 2003
Donovan Wylie, The Maze Prison, 2003

A Irlanda, conhecida hoje como o Celtic Tiger, passou de um dos países mais pobres para um dos países mais ricos do mundo.

Será que aos fotógrafos da Magnum lhes escapa a actualidade? Será que a agência Magnum conseguirá sobreviver por muitos mais anos? Será que a imagem fragmentada que dão da Irlanda, é tão absurda, como absurdas são agora as reacções dos burocratas de Bruxelas ao quererem expulsar a Irlanda da UE?

No final, não é tudo uma questão de sobrevivência? …e porque não procurar outros caminhos como Chris Killip, que não é da Magnum?
Chris Killip, Irlanda, 2004

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