Este mês a revista “Magazine Littéraire”, publica um Hors-Série dedicado ao tema “Mal de vivre ou quête de soi – La Solitude”. Os artigos organizados cronologicamente, iniciando em Homero e terminando em Paul Auster, revelam os poetas e os escritores que ao longo dos séculos se debruçaram sobre o tema, solidão, dando conta da evolução e dos vários significados que esta foi sofrendo, desde os primórdios até a actualidade. O artigo “Visions d’artistes” de Jean Clair, historiador, comissário e ex-director do museu Picasso, fala-nos das imagens que escolheu para ilustrar os artigos. Se o “Gigante” de Goya , 1818,
ilustra o texto sobre Homero “Tous ceux qui avaient évité la noire mort (...) étaient rentrés dans leurs demeures; mais Ulysse restait seul, loin de son pays et de sa femme”, Odisseia, século VIII a.C, “Interior com jovem ao piano” de Vilhelm Hammershoi
termina a ilustrar o texto sobre Paul Auster “Je crois, malgré tout, que chaque persone est seule tout le temps. On vit seul. Les autres nous entourent mais on vit seule.”, pensamentos que Auster desde cedo foi anotando e que hoje reconhece manter nos seus romances. Em 2005, o Grand Palais de Paris exibiu “Mélancolie – génie et folie en Occident” comissariada pelo mesmo Jean Clair. O melancolico, o solitário, isolado do mundo onde vive, foi o tema que durante mais de dez anos ocupou Jean Clair, e o resultado foi esta deslumbrante exposição. A palavra melancolia, remonta ao século IV a.C. Em grego, melankholia é formada pela associação de dois termos: kholé (bílis) e mêlas (negro) e significa literalmente “bílis negra” um dos quatro fluidos humanos segregados pelo baço. "Bílis negra" era evocada como uma doença ligada ao humor. Cícero, no século I a.C. ligou melancolia à loucura e propôs substituir o termo por furor. Ao longo dos tempos, a palavra melancolia, foi-se perpetuando sobre outros nomes, e o seu significado foi-se transformando consoante as épocas. Aristóteles, foi o primeiro a abandonar a associação de melancolia a uma doença para a associar ao homem de génio, e a partir do filósofo, melancolia foi associada à imaginação. Longe da Grécia, nos desertos do Egipto e da Síria surgia a acédia. No início do século IV muitos ermitas e anacoretas numa ruptura com a sociedade que achavam agonizante, partiram para os desertos para praticar o anacorismo. Foi nos desertos do Médio Oriente que surgiu a palavra acédia, uma versão da melancolia que significava apatia ou indiferença. Desviada da contemplação divina a mente dos anacoretas entregava-se à imaginação. Com o rosto apoiado na concha da mão e ar pensativo criava-se o estereótipo da melancolia que dura até aos dias de hoje.
A partir do século V. a acédia passa para o Ocidente medieval, pelo monge Jean Cassien. Ao longo de toda a idade média, a tradição grega de melancolia e a tradição oriental de acédia, misturam-se e sob a tutela de Saturno e Satanás acabam por designar o pior que se pode abater sob o homem. Melancolia e acédia significam agora a mesma coisa: uma tristeza nascida na confusão do espírito, um desgosto, ou amargura imoderada da alma, e é vista pelos cristãos como um pecado a evitar. Neste detalhe do quadro de Bruegel, o Velho, (1559),
é o diabo que assume a posse melancolica.
É a Renascença que retoma a tradição aristotélica de associar a melancolia ao homem de génio, e a famosa gravura de Dürer, Melencolia I, (1514), é a obra paradigmática.
É a Renascença que retoma a tradição aristotélica de associar a melancolia ao homem de génio, e a famosa gravura de Dürer, Melencolia I, (1514), é a obra paradigmática.
O morcego que vive na escuridão e gosta de sair ao crepúsculo, o terceiro quadrante do dia associada à melancolia, tem inscrito o título nas suas asas.
É ao crepúsculo que Gregory Crewdson fotografa os estados depressivos de quem habita hoje os subúrbios. Crewdson nas encenações que produz e fotografa, procura respostas nas suas memórias de infância. Agora na actualidade, melancolia é associada a depressão.
Mas voltemos à gravura de Dürer, e à figura central, uma mulher alada e coroada, com um compasso numa das mãos e a cara apoiada na outra. O olhar, como indicam os olhos abertos está concentrado, mas a figura olha para algo que está invisível, fora já da gravura. Espalhados vemos o esquadro, ampulheta, balança... e símbolos da crucificação, escadas, pregos e martelo. Logo por cima da coroa, em destaque, o quadrado mágico, cujas linhas, colunas e diagonais somam sempre 34.
Mas voltemos à gravura de Dürer, e à figura central, uma mulher alada e coroada, com um compasso numa das mãos e a cara apoiada na outra. O olhar, como indicam os olhos abertos está concentrado, mas a figura olha para algo que está invisível, fora já da gravura. Espalhados vemos o esquadro, ampulheta, balança... e símbolos da crucificação, escadas, pregos e martelo. Logo por cima da coroa, em destaque, o quadrado mágico, cujas linhas, colunas e diagonais somam sempre 34.
Todos estes objectos fazem uma clara referência ao conhecimento matemático e geométrico. O cão, outro companheiro da melancolia, e mais em cima um enorme dodecaedro irregular. Se o crepúsculo é a hora do dia associada à melancolia, o chumbo, o metal escolhido por Anselm Kiefer para o seu trabalho Melancholia,
é o metal associado à melancolia. A escultura de Kiefer, apresentada já na parte final da exposição, evoca o bombardeiro, messerschmidt, produzido na Alemanha no final de 1944, e tem em cima o poliedro de Dürer. Para Kiefer são os efeitos da genialidade no mundo actual.
Com o século das Luzes, Diderot em “La religieuse”, (1760), escreve “L’homme est né pour la société. Séparez-le, isolez-le, ses idées se désuniront, son caractère se tournera, mille affections ridicules s’élèveront dans son coeur des pensées extravagantes germeront dans son esprit comme les ronces dans une terre sauvage”. Os filósofos das luzes substituem os valores do céu pela terra e substituem o individual por ideais comunitários. Segue-se o Romantismo, que será o último refúgio da melancolia. O sagrado sublime transfere-se para a natureza. O homem pratica novamente a acédia, agora na contemplação da natureza. O mal do mundo, “weltschmerz” para os alemães, os ingleses chamar-lhe –ão “spleen”. O homem isolado contemplando a natureza é o tema de Caspar David Friedrich.
Com o século das Luzes, Diderot em “La religieuse”, (1760), escreve “L’homme est né pour la société. Séparez-le, isolez-le, ses idées se désuniront, son caractère se tournera, mille affections ridicules s’élèveront dans son coeur des pensées extravagantes germeront dans son esprit comme les ronces dans une terre sauvage”. Os filósofos das luzes substituem os valores do céu pela terra e substituem o individual por ideais comunitários. Segue-se o Romantismo, que será o último refúgio da melancolia. O sagrado sublime transfere-se para a natureza. O homem pratica novamente a acédia, agora na contemplação da natureza. O mal do mundo, “weltschmerz” para os alemães, os ingleses chamar-lhe –ão “spleen”. O homem isolado contemplando a natureza é o tema de Caspar David Friedrich.
Em 1878, Charcot cria na Salpêtrière um laboratário de fotografia dedicada à medicina. Sigmund Freud trabalha nesta altura com Charcot na Salpêtrière. A melancolia transforma-se em neurastenia. Na exposição, a única referência à fotografia é limitada aos estudos experimentais de Guillaume Duchenne de Boulogne. Numa parede, as fotografias dos seus estudos electrofisiológicos da expressão das paixões. Duchenne de Boulogne submetia os músculos da cara dos doentes a impulsos eléctricos.
Duchenne de Boulogne, 1852-1856
Duchenne de Boulogne, Mecanismes de la physionomie humaine 1862
Em 1915, Freud compara melancolia ao luto, ambas causam “uma depressão profundamente dolorosa, é suspenso o interesse pelo mundo exterior e a perca da capacidade de amar leva à inibição de qualquer actividade”, mas distingue a melacolia do luto, porque a melancolia provoca também “uma diminuição do sentimento de estima de si próprio”. No luto o objecto perdido é identificado, o mesmo não se passa num estado melancólico. É a última transformação da melancolia - a depressão.
A exposição terminava com “New York Movie” de Edward Hooper, testemunho que os espaços públicos são hoje os locais de solidão, e com a escultura gigante (Big Man) de Ron Mueck, (2000).
A exposição terminava com “New York Movie” de Edward Hooper, testemunho que os espaços públicos são hoje os locais de solidão, e com a escultura gigante (Big Man) de Ron Mueck, (2000).
Ron Mueck, 2000
No país de Atget, imperdoável a limitação a Duchenne de Boulogne. Mas quem se dirigisse à livraria do Grand Palais, nas duas enormes mesas repletas de livros sobre o tema da exposição, encontrava “Eugène Atget ou la mélancolie en photographie” de Alain Buisine.
Mas se Alain Buisine vê em Atget um fotógrafo melancólico, outros fotografaram as várias formas de solidão do homem moderno.
André Kertész fotografou os que procuram a solidão.
Mas se Alain Buisine vê em Atget um fotógrafo melancólico, outros fotografaram as várias formas de solidão do homem moderno.
André Kertész fotografou os que procuram a solidão.
André Kertész, Convento trapista, revista VU, 1930
Paul Strand em França, fotografou o olhar penetrante deste jovem,
Paul Strand, Young Boy, Gondeville France, 1951
um olhar de solidão interiorizada. Esquizofrénico? depressivo profundo?
Chris Killip fotografa a solidão imposta, a discriminação social, os rejeitados pela precaridade da vida, a solidão mais terrível da nossa sociedade.
Chris Killip fotografa a solidão imposta, a discriminação social, os rejeitados pela precaridade da vida, a solidão mais terrível da nossa sociedade.
Chris Killip, Boy on a wall, Jarrow, 1976
Taryn Simon fotografa a solidão dos reclusos condenados ao isolamento.
Taryn Simon, 2004
Carlos Miguel Fernandes fotografou na Islândia o homem a sós com a natureza.
Carlos Miguel Fernandes, Islândia, 2006
Mas não são estas fotografias do japonês Ueda Yoshihiko a melhor tradução de uma viagem ao interior de si?
É a alma (tamashii) que sai do corpo ou o inverso? A fotografia é estática ao contrário do cinema, mas olhando para estas fotografias sentimos que o curso da vida continua a correr.
As fotografias são da série Amagatsu, 1990-1993
2 comentários:
Excelente artigo que me ajudou a conhecer esta melancolia que sinto e que teima em não me abandonar nos últimos tempos ... Obg TMR
Mais um post que nos abre os olhos... Brilhante reflexao...
Para ler e reler ao longo dos proximos dias!
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