segunda-feira, outubro 22, 2007

Os meses do ano

Estamos a chegar ao fim de Outubro e ainda nos vestimos com as roupas frescas do Verão.

Na Idade Média, o livro de horas, livro de orações da nobreza e da burguesia rica, seguiam o ritual das horas litúrgicas dos mosteiros, sete vezes ao dia eram abertos para as orações, daí chamarem o livro de horas. Compostos por textos de evangelhos, orações à virgem, ofícios dos mortos, festas do ano litúrgico, tinham também um calendário. Na Idade Média, o poder do senhor feudal media-se pelas terras e castelos que possuia e a sociedade francesa era essencialmente rural. As actividades do homem eram estruturadas pelos ciclos das estações e pelas festas religiosas. O duque, Jean de Berry, um dos mais importantes nobres da época, irmão do rei, Carlos V, do duque d’Anjou e do duque da Bourgogne, possuia imensas terras, castelos, e uma magnífica colecção de livros: missais, bíblias, salmos, e quinze livros de horas, entre eles o célebre “Les Très Riches Heures du Duc de Berry”, agora num museu. As iluminuras do calendário do livro, pintadas pelos irmãos de Limbourg, Jean, Paul e Herman, entre 1440-1489, são hoje uma preciosidade pela beleza, minúcia e detalhe com que nos revelam os trabalhos da vida rural e costumes da época. A percepção do tempo era ciclíca, as iluminuras representam o ciclo lunar, os solstícios e os equinócios, mas acima de tudo as representações evocam o ciclo dos trabalhos rurais, tarefas específicas, que ocupavam o homem em cada mês do ano.
Outubro é o mês das sementeiras, lavra-se e semeia-se a terra.

"Les Très Riches Heures du Duc de Berry", Mês de Outubro, Iluminura.

A cena desenrola-se na margem esquerda do Sena e ao fundo vê-se o palácio do Louvre, residência do rei, irmão do duque, em Paris. As terras que estão a ser lavradas e semeadas no primeiro plano pertencem ao duque de Berry. No plano intermédio, pessoas da cidade passeiam na margem do Sena.
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Passando as muralhas da cidade entrava-se no campo, numa paisagem domesticada pelo homem.
É Outubro e o tempo já está fresco, o camponês que semeia a terra tem as pernas e a cabeça protegidas.
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O outro homem a cavalo utiliza uma grade para desterroar e revolver a terra com uma pedra em cima para enterrar e lavrar melhor, também está agasalhado. Na iluminura de Julho, mês da ceifa e tosquia do gado, o tempo é quente.
"Les Très Riches Heures du Duc de Berry", Mês de Julho, iluminura
O castelo du Clain perto de Poitiers uma das residências do duque de Berry, ocupa o fundo. Dois camponeses ceifam com foices o trigo, minuciosamente ilustrado. Ambos usam chapéus de palha e camisas frescas abertas. No que está virado de frente podemos até ver a roupa interior.
Detalhe
À direita tosquia-se as ovelhas, onde a lã acumula aos pés dos dois tosquiadores.
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É Julho e o tempo está quente.

Em 1950 Paul Strand deixa a América pela Europa, sete anos antes deixara também para trás o cinema documental. “Native Land” o seu último filme, leva-o novamente à fotografia, à Nova Inglaterra. Em 1945 está a fotografar a Nova Inglaterra. Em 1950 edita “Time in New England”, com textos escolhidos por Nancy Newhall. Quando chega a França procura uma aldeia para um documentário fotográfico. Juntamente com Hazel, sua mulher, percorrem o país, mas Strand não encontra a aldeia que quer. Apesar disso, Strand gostou das fotografias que tirou em França, e em 1952 edita “La France de Profil” acompanhado de um texto do poeta Claude Roy. Mas não desiste da ideia da aldeia, e em 1954 desafia o realizador de cinema, Cesare Zavattini, que o ajude a procurar o local. Enquanto foi realizador Strand imaginou o livro que agora quer fotografar, mas desta vez bate à porta certa, pede a um realizador, que o ajude a procuraar. Cesare Zavattini, realizador neorealista, explora as emoções e os acontecimentos mudanos do dia a dia. Em 1952, comenta numa entrevista “ The old realism didn’t express the real. What I want to Know is the essence, the really real, the inner as well as the outer reality”. Depois de algumas hesitações, Zavattini sugere Luzzara a Strand, a aldeia onde nascera e vivera em pequeno.
“Un Paese”, 1955, uma aldeia, é o primeiro trabalho de Strand onde os retratos são a essência do livro.
Numa carta a Nancy e Beaumont Newhall, em Maio de 1958, Strand escreve o seguinte sobre o livro ”...Zavattini...suggested Luzzara, on the Po, his birthplace.
Paul Strand do livro "Un Paese"
It was by then well into November, so we decided to go to Luzzara on our way back. Well, visually at first sight it was the last place one would pick; flat country; nondescript architecture, the non picturesque to the ntn degree. However we felt we must do the book there no matter what, for Zavattini loved Luzzara, Knew everyone there and was Known to them, an enormous asset to begin with.
Paul Strand do livro "Un Paese"
… coming back the following Spring, just had to get down to it and dig. … That is the story of how this “portrait of a village” finally happened, this very American idea…”
Os textos de Zavattini que acompanham as fotografias são relatos das vidas e memórias das pessoas que ficaram na aldeia, mas Zavattini não resiste e ao texto mistura também as memórias do tempo quando em pequeno viveu em Luzzara.
“ A terra nunca dá o suficiente”, escreve Zavattini em “Un Paese”, “e cada mês tem as suas tarefas precisas. Em Janeiro, com a neve preocupamo-nos com o gelo das vinhas que temos que proteger, mas acima de tudo
Paul Strand do livro "Un Paese"
são os instrumentos agrícolas que temos de reparar: ancinhos, enxadas, pás e precisamos de vassouras fortes para varrer os estábulos e as eiras.
Paul Strand do livro "Un Paese", "It costs 150 lire to sharpen a scythe, 40 lire for scissors, 50 lire for a timber-ax..."
Em Fevereiro é a época em que as vacas dão à luz e o vinho é engarrafado na mudança da lua.
Paul Strand do livro "Un Paese", "...From April to December we sell thirty kilos of bread a day, and from January to March about eighteen kilos, because during that period, people work less and consequently eat more polenta..."
Em Março os bezerros são vendidos no mercado, e a produção de leite aumenta,
Paul Strand do livro "Un Paese"
Paul Strand do livro "Un Paese"
esse leite forte que nos deixa bigodes brancos que limpamos com a mão depois de uns longos golos. Em Abril cavamos a terra para semear o milho, e desinfectamos a terra para evitar que os pássaros comam as sementes.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Em Maio ceifamos o feno
Paul Strand do livro "Un Paese"
e juntamos as cerejas das cerejeiras que nascem junto às casas. Quando era pequeno nunca percebi, como as pessoas que viviam nessas casas floridas de amarelo, cor-de-rosa e branco, pudessem ter problemas. Em Junho é a colheita do trigo, e ceifa-se o feno pela segunda vez.
Paul Strand do livro "Un Paese"
As carroças carregadas de molhos de feno até ao cimo, levam sempre uma criança no topo.
Paul Strand do livro "Un Paese"
As lavadeiras vão para o rio, para o Po, e procuram os bancos de areia para aí lavarem a roupa na água fresca e limpa. Depois é a vez das margens do Po ficarem cobertas com a roupa lavada. Em Julho enxertamos os rebentos da vinha. Regrassam as raparigas dos arrozais do Piemonte, para onde foram trabalhar,
Paul Strand do livro "Un Paese", "I went to Piemonte this year with my mama, who goes there to work as a rice-weeder, because my papa couldn't stay behind with me since he was alone. There in Piemonte I looked after the landlord's geese in the pasture"
Paul Strand do livro "Un Paese", "This year I went to Piemonte to work as a rice-weeder. I would like to get engaged, because I'm fifteen years old..."
mas chegam a tempo para as festas da aldeia, onde gastam parte do dinheiro que ganharam. Em Agosto estruma-se a terra, e espalha-se os novos rebentos da vinha. Colhe-se a beterraba, parte é vendida para as refinarias de açucar, a outra é usada na forragem do gado.
Paul Strand do livro "Un Paese", "I'm in the third grade. I like to read history but I don't want to study any more. In summer I like to go swimming and diving in the little channel..."
Em Setembro enchem-se os silos, corta-se a cana do açucar, colhe-se o milho, e lavra-se a terra,
Paul Strand do livro "Un Paese"
preparam-se as pipas do vinho, e prepara-se a vindima. “Let’s finish this business of the months and their labors” escreve Zavattini antes de entrarmos em Outubro. “Em Outubro acaba-se a vindima e nos lagares as uvas são pisadas. Prepara-se a terra para as sementeiras, com a ajuda dos bois da charrua e do arado.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Semeia-se o trigo, centeio e a cevada.
Paul Strand do livro "Un Paese", "...I'm sixty years old, a farmworker, but almost unemployed: I work an average of thirty days each year, partly in the sprig and partly in the summer when they cut the wheat, partly in the autumn for the grape harvest"
Em Luzzara, nesta pequena aldeia, Outubro é o mês onde se encontra sempre no chão bagos de uvas e é também o mês que inesperadamente surgem os nevoeiros, as margens do Po deixam-se de ver. Ao fim da tarde a aldeia parece deserta, mas os cafés estão cheios de gente. Em Novembro apara-se e podam-se as vinhas.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Retira-se a vinha arruinada pela peste e planta-se uma nova. No meio do mês a ceifa do feno está acabada e deixa-se de mugir as vacas. O nevoeiro torna-se intenso e os aldeões ficam em casa. É o mês de Santa Lucia, a santa da terra. Em Dezembro decanta-se o vinho, reparam-se as carroças e é a matança do porco. As salsichas da minha aldeia são as melhores do mundo, mas não se comercializam. Em Dezembro neva, e as águas do Po gelam.
Paul Strand do livro "Un Paese", "We sink the large winter boats because they stay better preserved that way, otherwise the ice breaks them apart..."

Há séculos que em cada mês do ano se repetem as tarefas rurais.

Estamos em Outubro e as árvores de folha caduca estão ainda cheias de folhas, e nós na cidade ainda andamos vestidos com a roupa de Verão, pois parece que Outubro é Julho.

1 comentário:

patas disse...

Gostei muito. Obrigado.