sábado, junho 30, 2007

Roma

Ontem ao ver a programação da Maison Européenne de la Photographie em Paris, Italie-doubles visions despertou-me a atenção. A exposição confronta diferentes olhares de fotógrafos de gerações e nacionalidades diferentes, sob um tema comum, a Itália. Veio-me à memória o fascinante livro Extinção de Thomas Bernhard. Toda a temática de Extinção, gira à volta de um local, a região da Alta Aústria, onde o escritor nasceu e cresceu. Com uma narrativa que se aproxima de uma “partitura”, as ideias sucedem-se, repetem-se, enredam-se, girando como que numa espiral. Mas o narrador, só consegue viver em Roma “...Até que vim para Roma. Até que o meu amigo Zacchi me arranjou um apartamento na Piazza Minerva

Do livro Rom, Piazza Minerva, Panteão, c. 1858, Anónimo.
...Do Hassler desfrutei, logo no primeiro momento, essa vista sobre Roma para além da Praça de Espanha e respirei fundo e tive a sensação de estar salvo. Daqui já não vou sair mais, pensei para comigo nesse primeiro momento. Estava à janela e dizia para mim próprio, estou aqui e aqui vou ficar, daqui já nada me faz sair. E as minhas contas saíram certas, fiquei em Roma e já daqui não saí. È verdade que gostei muito de todas essas outras cidades, mas nenhuma teve em mim uma acção existencial tão profunda. Em todas essas cidades vivi bastante tempo ou até muito tempo, mas nunca me senti nelas em casa. A todas essas cidades me afeiçoei, mas nenhuma se tornou por isso a minha cidade. Adoro-as a todas, Lisboa sobretudo, Varsóvia, Cracóvia, Palma, mesmo Viena e Paris, e Londres também e Palermo, mas em nenhuma dessas cidades eu aguentaria viver hoje durante bastante tempo. Deixei-as para atrás, sem ter a sensação de ter perdido uma coisa que me pertencia, que era inteiramente minha. Tive por vezes a ideia de que também poderia passar em Lisboa tantos anos como em Roma, mas depois sempre me acudia à memória o meu tio Georg com as suas palavras sobre aquela que é uma cidade provinciana. Passei em Lisboa o tempo mais agradável da minha vida, mas não como em Roma, o melhor. Há em Lisboa, como em nenhuma outra cidade do mundo, o que eu classifico de natureza da arquitectura. Em Lisboa, este conceito atinge a perfeição, Gambetti, é pena que você nunca tenha tido a oportunidade de ir a Lisboa. Foram os meus anos mais agradáveis, provavelmente também os mais felizes. Mas no fim de contas Lisboa não foi realmente a cidade ideal para a minha cabeça, que, em última análise, sempre reclamou o meu maior interesse, ao passo que Roma o foi sempre...”.


No século XIX muito ainda estava por descobrir, e os fotógrafos podiam ainda propor imagens inéditas. O livro Rom, In Fruhen Photographien 1846-1878, é uma selecção de fotografias de anónimos sobre Roma, ainda antes da invasão turística.
Pórtico de Ottavia, c.1870, do livro Rom
Convento Somaschi, c. 1870, do livro Rom.
Panteão, c.1853, do livro Rom

Cem anos depois, na década de 1950, Roma de William Klein não será muito diferente da Roma de Frederico Fellini. Nesses anos a fotografia estava próxima do neo-realismo cinematográfico, e o cinema próximo da “street photography”.
Em 1956, Fellini está em Paris para apresentar “ I Vitelloni”, 1953. Klein tem uma grande admiração por Fellini e telefona-lhe: “Estou agora mesmo a ver o seu livro New York, porque não vem para Roma e me ajuda no meu próximo filme? Será meu assistente.”, recorda-se Klein numa entrevista ao jornal Libération. Mas que livro era aquele que Fellini tinha defronte dos olhos?

Em 1954, Klein a viver em Paris regressa a Nova Iorque, cidade onde cresceu e que simultâneamente odeia e ama. Aceita trabalho na Vogue e aproveita para fotografar a cidade: “Provocava as pessoas, dizia-lhes Hold it! don’t move! Hey, look this way!, as pessoas perguntavam para o que era e eu respondia-lhes The news! Wow!”. Alexander Liberman, o director artístico da Vogue dirá “those pictures had a violence I’d never experienced in anyone’s work”. Klein tal como Fellini regista os pequenos momentos da vida, o grotesco ao lado do belo, com uma visão ousada e panôramica. Nova Iorque de Klein é um outro universo, tal como Roma, o será em “La Dolce Vita”, cinco anos mais tarde.
É a mesma liberdade ilimitada e visão extravagante que os une, Fellini no cinema, Klein na fotografia. Fellini criava um cinema genuinamente moderno, diferente dos filmes épicos da época, como Ben-Hur, e procurava uma nova forma de contar histórias. Klein vai aos limites do que à época se fazia em fotografia, “ The kinetic quality of New York, the kids, dirt, madness - I tried to find a photographic style that would come close to it. So I would be grainy and contrasted and black. I’d crop, blur, play with the negatives”.
Para Klein é inevitável não aceitar o convite e segue para Roma, mas o filme atrasa-se, Giulietta Masina adoece, o pai de Fellini morre, “andei então por Roma, estavamos em 1956, ia às praias de Ostie. Essa gente gostava de posar...” conta Klein.

Em Roma é difícil não tropeçar em estátuas, fontes, ruínas, monumentos...
William Klein, do livro Rome, 1956
mas não é essa a Roma que Klein fotografa, é o dia a dia da gente comum nas ruas.
Novamente a utilização das grandes ângulares, para captar o máximo de coisas.
William Klein, do livro Rome, 1956

Admirador de Fellini, Klein vira em Paris “I Vitelloni”, os inúteis, filme em que Fellini capta de forma magnífica a vaidade e a imaturidade daqueles jovens...jovens que são homens, ou ficarão crianças para sempre?
William Klein, do livro Rome, 1956

O que fazem eles? jogam? perseguem raparigas? sonham? como os cinco personagens de “I Vitelloni” os inúteis?
Neste filme o pai de um deles, embora de baixa estatura usa ainda o cinto para bater no filho, já homem. Nesta fotografia de Klein,
William Klein, do livro Rome, 1956
este homem de porte pequeno e mãos nos bolsos, sugere uma ameaça... podia ser o pai de Fausto, que com 30 anos ainda tem medo do pai...
Mas se o cenário de “I Vitelloni” é Rimini, terra natal de Fellini, Roma será o cenário de “La Dolce Vita”, 1960.
Em New York segui o modelo do New York Daily News, diz Klein “ I saw the book as a monster big-city Daily Bugle, with its scandals and scoops, that you’d find blowing in the streets at three in the morning. The New York book was a visual diary and it was also a kind of personal newspaper, I wanted it to look like the news…I was a newspaperman”. Agora é Mastroianni, que no papel de Marcello, também é jornalista. É o mundo veloz e sedutor do jet-set de Roma onde os paparazzi estão em toda a parte. Será o “scoops and scandals” de Roma. Marcello, gosta de pensar que está na sociedade sem fazer parte dela.
O contágio é mútuo, e não será esta fotografia de Klein
William Klein, do livro Rome, 1956
que levará Fellini a abrir
Fellini, La dolce Vita, 1960
Fellini, La Dolce Vita, 1960
e terminar “La Dolce Vita” com os novos bairros de Roma?
Fellini, La Dolce Vita, 1960
Fellini, La Dolce Vita, 1960
Fellini, La Dolce Vita, 1960

Agora é o livro Tutta Roma, 2006, de Martin Parr. Vivemos com a necessidade de fazer viagens, de fazer qualquer viagem, é a vontade de ir a Roma porque alguém nos disse, “tens de ir a Roma ver a Capela Sistina...”. Parr fotografa a Roma dos turistas, que vão a toda a parte e vêem tudo o que lhes disseram para ver. Com o seu humor habitual, estes turistas de máquinas em riste sempre prontos a captar pela enésima vez os monumentos já vistos e revistos em imagens.
Martin Parr, do livro Tutta Roma, Coliseu, 2006
Do livro Rom, Coliseu, c.1860
Martin Parr, do livro Tutta Roma, Forum Romano, 2006
Do livro Rom, Forum Romano, c.1858
Martin Parr, do livro Roma, Fonte de Trevi, 2006
Do livro Rom, Fonte de Tartarugas, c.1868

“...Com a invenção fotográfica, isto é com o começo desse processo de estupidificação há muito mais de cem anos, o estado de espírito da população mundial começou a piorar e tem vindo piorando continuamente. As imagens fotográficas, disse eu a Gambetti, puseram em marcha esse processo mundial de estupidificação e ele atingiu esta velocidade efectivamente mortal para a humanidade no momento em que essas imagens fotográficas adquiriam movimento. Hoje e de há décadas para cá, a humanidade só olha estupidamente essas imagens fotográficas que são mortais e está por elas como que paralisada. Na viragem do milénio, o pensar já não será possível para esta humanidade, Gambetti, e o processo de estupidificação, que foi posto em marcha pela fotografia e que, com as imagens em movimento, se tornou um hábito a nível mundial, estará no apogeu...” T.Bernhard.
E como tantas vezes repete o narrador de Extinção “...pensei eu, em pé à janela, olhando para a Piazza Minerva, em baixo, e depois mais adiante, para o Panteão...” este olhar que o narrador vê através da janela do seu apartamento, é agora assim,
Martin Parr, Piazza Minerva, e Panteão, do livro Tutta Roma, 2006

“Existir num mundo assim, só já dominado pela estupidez, muito dificilmente já será possível, Gambetti, disse eu a este, pensei eu agora junto da sepultura aberta, e será bom que nos suicidemos ainda antes que esse processo de estupidificação do mundo se realize na totalidade. Vistas as coisas assim, é lógico, Gambetti, que na viragem do milénio, aqueles que existem do pensamento e pelo pensamento já se tenham suicidado”. T. Bernhard.

2 comentários:

sem-se-ver disse...

fiquei sem fôlego.

(de admiração por si)

Madalena Lello disse...

sem se ver, sei que gosta de livros, Extinção é excelente, uma edição de 2004 da Assírio e Alvim.