segunda-feira, março 30, 2009

River de André Cepeda

Até 21 de Abril, pode ver na galeria Pedro Cera, a exposição “River” de André Cepeda. Mas nada melhor que o pequeno texto escrito pelo fotógrafo para resumir este seu trabalho: “This Project is the result of 28 days on the road in the company of my friend and artist Eduardo Matos, throughout the many roads of the USA, specially along the Mississippi River, either by car, train or bus, sleeping each night in a different motel


André Cepeda, Blues around my bed, Kentucky, 2008

and in the following days discovering and exploring the changing light and colours of the American landscape”.

E nessa busca de mudança de luz e cor do “American landscape”, o que encontramos em “River”, não é a paisagem sublime da grande América, mas as relíquias do dia a dia de uma civilização. E este barracão,


André Cepeda, Everything's gonna be alright, Greenville, Mississippi, 2008

cuja porta e janela parecem ser consumidas pelo fogo, ocupa, no espaço da galeria, um lugar de destaque. Tirada em Greenville, no estado do Mississippi - como nos informa a legenda - Cepeda, que por hábito informa-nos apenas o local, a este barracão, que não percebemos que função teve em outros tempos, acrescenta-lhe um título: “Everything’s gonna be alright”.

Não muito longe de Greenville, em Greenwood, na mesma estrada que liga as margens do Mississippi à Route 55, William Eggleston, não muito longe do local mas muito longe no tempo, 1973, criava escândalo e sensação ao fotografar a banalidade de uma lâmpada nua num berrante tecto vermelho.


William Eggleston, Greenwood, Mississippi, 1973

Cem anos depois de Thomas Edison inventar a lâmpada eléctrica (1879), numa América que gostava de invenções, e se tornara no motor da economia mundial, Eggleston dava de caras com uma lâmpada envolta num improvisado e perigoso emaranhado de fios eléctricos. Ao contrário de Cepeda - um português em viagem pela América - Eggleston fotografa em casa como explica John Szarkowski no prefácio do célebre “William Eggleston’s Guide”, 1976: “these pictures of aunts and cousins and friends, of houses in the neighborhood and in neighboring neighborhoods, of local streets and side roads, local strangers, odd souvenirs, all of this appearing not at all as it might in a social document, but as it might in a diary, where the important meanings would be not public and general but private and esoteric", onde, tanta familiaridade, nos deixa espreitar por debaixo das camas,


William Eggleston, Memphis, c.1972

no exterior, vemos um Mississippi,


William Eggleston, Crenshaw, Mississippi, c.1972

que ainda hoje parece incólume às invenções e mudanças, onde o Looking Good, desta fachada fotografada por Cepeda,


André Cepeda, Goin' down south,Greenville, Mississippi, 2008

não faz jus ao nome.

Num artigo recente, “How the crash will reshape America”, que podemos ler aqui, Richard Florida analisa as transformações, que as diferentes crises, na curta história do país, provocaram na sua geografia económica. Na actual crise, e segundo alguns peritos, como refere o artigo, pequenas cidades como Canton no Mississippi e Smyrna no Tennessee, onde “the establishment, over the years, of plants that manufacture foreign cars”, poderão beneficiar e crescer “if the Big Three, (GM, Ford, Chrysler) were to become, say, the Big Two”. Será que em breve, no Mississippi, “Everything’s gonna be alright”?

Mas não é só a proximidade de Greenville e Greenwood que nos levam a Eggleston.
No meio destas árvores,


André Cepeda, 79 South,Missouri, 2008

que fazem estes dois carros, ao lado deste monte de areia?

No meio destas árvores,


William Eggleston, Sumner, Mississippi, Cassidy Bayou in background, c.1972

que fazem estes dois homens, ao lado deste carro?

E no meio de “houses in the neighborhood and in neighboring neighborhoods, of local streets and side roads,...”, “River”, conduz-nos também por estradas locais, onde uma paisagem caótica predomina.


André Cepeda, Untitled, Missouri, 2008

Durante três anos, a deambular pelas estradas da América do pós-guerra, na companhia do seu amigo Neal Cassady,


André Cepeda, Self Portrait with Eduardo, Jackson, Mississippi, 2008

carro, movimento e estrada, serviram de ingredientes para o “On the road”, 1957, de Kerouac. Sem o saber, inaugurava o mito da viagem, que atirou para a estrada, gerações, que ouviam o inconfundível Dylan no seu “How many roads must a man walk down/before they call him a man...”.

“River”, o livro que acompanha a exposição, o primeiro da editora Chromma, o carro, o meio escolhido para iniciarmos a viagem.


André Cepeda, Spending time in keokuk, Iowa, 2008

Mais à frente, (no livro), paramos para uma pausa num restaurante de estrada.


André Cepeda, Riverside, Dallas City, Illinois, 2008

Da única janela que ilumina o recinto, às cortinas, ao saleiro e pimenteiro, colocados no centro de mesas em tampo de fórmica, nada, em anos, parece ter mudado – nem mesmo a quietude do lugar.


Robert Frank, do livro "The Americans", Restaurant - U.S.1 leaving Columbia, South Carolina, c.1955-56

Aos 47 anos, o projecto de viagem e de vida, tornou-se para Kerouac o seu maior e trágico desencanto - morreria a 21 de Outubro de 1969. Nesse espaço de dez anos, Kerouac percebia que nem a América nem o mundo eram os mesmos, como agora, nem América nem o mundo são os mesmos, e só nos resta esperar “How the crash will reshape America”.


André Cepeda, Untitled, Tennesse, 2008


Ler mais...

terça-feira, março 24, 2009

A crise e as suas causas

Timothy Geithner, secretário do Tesouro da Administração Obama, anunciou ontem, mais um plano, desta vez com detalhes, sobre como remover os activos “tóxicos” dos balanços contabilísticos das instituições financeiras. Para alguns analistas, Geithner, “desta vez fez o trabalho de casa”, e o mercado reagiu entusiasticamente, com o Dow a fechar com um ganho de 7%.
Mas nem todos partilharam o mesmo optimismo. O prémio Nobel, Paul Krugman, sente-se desapontado: “In fact, it fills me with a sense of despair”, pois para ele, o que Geithner propõe pouco difere do plano do seu antecessor: “Mr. Paulson proposed having the government buy the assets directly. Mr. Geithner instead proposes a complicated scheme in which the government lends money to private investors, who then use the money to buy the stuff”. Para Krugman, ambos os planos assentam na mesma ideia errada – a de acharem que os “bad assets on banks’ books are really worth much, much more than anyone is currenttly willing to pay from them”, e tal como este par de sapatos,

Chema Madoz

que agarrados pelo mesmo atacador, não deixam o dono andar, para o Nobel, o plano de Geithner não tem pernas para andar.

Durante anos, quem teve pernas para andar, foram os preços das casas nos EUA. Com as taxas de juro anormalmente baixas, 1 % entre 2002-2004, conjugado com modelos elaborados e complexos – a securitização – que a Banca pedia aos matemáticos,


Chema Madoz

George W. Bush, podia prometer, mesmo aos que não podiam, o “sonho americano”. Em 2004, em plena campanha de recandidatura não se cansava de dizer: “America is a stronger country, every single time a family moves into a home of their own”, e a sua política encorajou ainda mais, a compra de casa própria, mesmo para aqueles que não tinham recursos.

Com a corrida aos empréstimos, os preços das casas não tardaram a subir em flecha,


Chema Madoz

mas a exagerada inflação, que atacava o mercado imobiliário, não passou desapercebida, Paulson, um gestor de um grande hedge fund, (não o Henry Paulson, o então Secretário de Estado do Tesouro), aconselhava os seus clientes, com demonstrações gráficas, a se posicionarem vendedores no mercado do subprime. Quando a bolha rebentou, quem seguiu o seu conselho, arrecadou mais de 500% de valorização e a Paulson & Co.Inc ganhou $15b. Será que Paulson foi um visionário? ou será que os políticos, inebriados com o crescimento económico, não olhavam para os gráficos?


Chema Madoz

Em pleno Verão de 2007, entre 9 e 10 de Agosto, a taxa de juro - Libor a três meses -subia uns dramáticos 90 pontos base, uma situação pouco usual, mas demasiado perigosa, na medida em que milhares de empréstimos, $300 000bn a nível global, o que corresponde aproximadamente $45 000 por pessoa, estavam indexadas a essa taxa.
Reduzir então o spread, tornou-se a tarefa prioritária da política monetária americana. Para aplicar a resposta mais correcta era crucial diagnosticar as verdadeiras razões dessa subida. Se o problema fosse falta de liquidez, abrir janelas


Chema Madoz

e injectar liquidez no mercado seria a solução. Mas se pelo contrário, o problema principal fosse o risco da contraparte, a forma mais correcta de agir, seria olhar para os balanços dos Bancos, e exigir-lhes mais transparência e qualidade, de forma a agir, o mais rápido possível, nos incumprimentos, que entretanto se alastravam, ou seja, substituir a muleta que os sustentava por uma estrutura sólida.


Chema Madoz

Com um curriculum invejável e com uma pesada bagagem em experiência,


Chema Madoz

Ben Bernanke, um estudioso e perito da Grande Depressão em conjunto com Henry Paulson, um ex-top da Goldman Sachs, olharam para os gráficos, e aflitos com o que viram, na ânsia de agirem rápido, presentearam os Bancos, com milhares de milhões de dólares.


Chema Madoz

Em pleno Verão, não tardou, que tudo se derretesse, pois ao contrário do que se passara na Grande Depressão, cuja corrida aos Bancos, provocara falta de liquidez, agora o problema residia nos activos de elevado risco, que começavam a não ter valor no mercado, e que os Bancos continuavam renitentes em contabilizar correctamente.


Chema Madoz

Com tal actuação política, o dólar descambou e a crise, que até aí era só financeira, passou rapidamente para a economia, as matérias-primas, e o petróleo então foi a estrela, não mais pararam de subir. O Ocidente olhou com desdém para os países como a China e a Índia, o mal vinha dessa gente toda,


Chema Madoz

que agora, com melhores níveis de vida, consumia muito mais. Outros, acusavam os gestores dos hedge funds, como os maus da fita, pois diziam aproveitar a subida do petróleo para enriquecerem ainda mais, e não tardou o ataque ao capitalismo liberal, à “mão invisível” de Adam Smith,


Chema Madoz

que todos apontavam não funcionar. Smith, “que não encarava o mecanismo de mercado como um agente independente por excelência, nem olhava o motivo do lucro como tudo o que é preciso”, como lembrava há dias um outro Nobel da Economia, Amartya Sem, foi alvo de crítica, nos jornais de todo o mundo, e agora, com o reforço do controlo estatal na economia,


Chema Madoz

é a vez de Keynes saltar para a ribalta.

Com a crise, que entretanto não parou de agravar-se, sem luz ao fundo do túnel,


Chema Madoz

com as taxas já a zero, as autoridades continuaram a injectar biliões de dólares nos Bancos, através dos TAF, dos TARP…, nessa sopa de letras, que não pára de crescer. Ontem, foi a vez de Geithner apresentar o novo programa, fala-se em triliões, mas agora, aos maus da fita, aos gestores dos hedge funds, pede-se que alinhem, juntamente com as autoridades, a ajudar os Bancos que continuam sem emprestar nem um cêntimo, a livrarem-se dos activos tóxicos.


Chema Madoz

Ontem Strauss-Khan, director-geral do prestigiado Fundo Monetário Internacional (FMI), que em Dezembro de 2007, declarava que o risco do mercado imobiliário americano não iria pesar no crescimento económico e que o país não entraria em recessão, veio então ontem dizer, na cidade de Genebra, “que a situação económica mundial continua extremamente preocupante e difícil, com a ameaça de uma recessão global este ano”, e sugeriu, para quem o quer ouvir, o estímulo ao consumo, “porque as políticas monetárias chegaram ao limite”.

Bom, resta então a cada um de nós, puxar pela imaginação, e tentar sair deste poço, onde os políticos nos deixaram.


Chema Madoz

Num mundo virado ao avesso, entalado numa verdadeira encruzilhada,


Chema Madoz

não é Chema Madoz, (atenção não troque o Z pelos ff), o grande visionário?


Ler mais...

sexta-feira, março 20, 2009

No limiar das diferenças

Em 1948, no livro “Notes towards the definition of culture”, T.S. Eliot, descrevia assim a cultura inglesa:
“(…) o dia de Derby, a regata de Henley, o 12 de Agosto, uma final de taça, as corridas de cães, o jogo dos dardos, o queijo de Wensleydale, caldo verde cortado aos bocadinhos, igrejas góticas do século XIX e a música de Elgar”.
À semelhança do filme “Spare Time”, 1939, do cineasta Humphrey Jennings, que agora se pode ver no CCB, na exposição “Arquivo Universal”, de que falámos no post anterior e que este continua,



Eliot descrevia a cultura inglesa, como um todo de vida, a “way of life”, que incorpora todas as actividades e interesses característicos de um povo - no sentido dos indivíduos ou das pessoas -












que, segundo o narrador do filme, são mais visíveis nos usos que fazem do seu tempo livre: “uma oportunidade de sermos nós próprios, uma oportunidade de fazermos o que queremos”, que ouvimos ao longo do documentário.

Ao lado, Humphrey Spender, que entre 1937-38, a pedido de Tom Harrisson, um dos fundadores do projecto "Mass Observation", projecto para o qual Jennings também colaborou, fotografou os ingleses no seu dia a dia: na igreja, na rua, no pub, a tomar chá, nas compras, as campanhas para as eleições parlamentares…











enfim, o retrato dos modos de vida tradicionais, que os ingleses herdaram dos seus antepassados, e que, como vemos no filme e nas fotografias, os legam aos seus descendentes,

num diálogo espontâneo entre gerações. Modos de vida, que, embora gradualmente adaptados e ajustados às novas circunstâncias, expressam contudo uma liberdade, visível neste pluralismo das associações intermédias, independentes de qualquer acção governativa - igreja, associações desportivas, vida familiar, e tantas outras associações voluntárias, - opõem-se, como vimos no post anterior, aos modelos abstractos de perfeição, de poder único, que a Europa continental viria a adoptar com Hitler, Mussolini, Lenine, Estaline e em certa medida Franco e Salazar. Ao contrário de Churchill, que na tradição de um governo limitado, marcante na cultura política anglo-americana, foi intérprete, como muitos o denominaram, do espírito inglês, percebeu o fanatismo desses homens, do poder único e ilimitado dos seus governos, que interferem, mudam e inovam, em vez de simplesmente garantirem os modos de vida variados, onde os indivíduos ou pessoas, como revela o projecto “Mass Observation”, se sentem mais confortáveis.

E agora é altura de regressarmos à questão deixada no último post: porque terá Jorge Ribalta, o comissário da exposição, preferido mostrar, “Menschen des 20. Jahrhunderts”, a obra de August Sander, ao lado de “Mass Observation”, em lugar de o situar junto aos seus contemporâneos, Walter Balhause e Eugen Heiling, que fotografaram, como já vimos, os desempregados, marginalizados e operários da mesma República de Weimar?

Talvez possamos responder com uma outra questão: porque terá Sander, numa Alemanha arruínada por uma crise económica, que levava milhares de pessoas a ficarem sem emprego, preferido fotografar, (ao contrário de Balhause e Heiling), de forma obsessiva e sistemática, o retrato do seu povo, o povo alemão?
Nas centenas de rostos, que Sander fotografou, o observador, tal como o fotógrafo o foi, é atraído pelas diferenças entre:
o crítico de arte;

August Sander, Crítico de arte, 1927
o médico;

August Sander, Médico, 1928
o procurador;

August Sander, Procurador, 1931
a freira;

August Sander, A Freira, 1921
o jovem instrutor;

August Sander, O jovem instrutor, 1931
o cigano;

August Sander, O cigano, 1930
o jovem comerciante;

August Sander, O jovem comerciante, 1929
os agricultores;

August Sander, Jovens agricultores, 1914
a pedinte;

August Sander, Pedinte,1930
o arquitecto;

August Sander, O arquitecto, 1930
a mulher de um arquitecto;

August Sander, A mulher de um arquitecto, 1928
o viúvo;

August Sander, O viúvo, 1914
o industrial;

August Sander, O industrial, 1928

o farmacêutico, o banqueiro, o professor de liceu, o deputado, o mágico, o vendedor de ratoeiras turco...

Intuía Sander, a purga intelectual do totalitarismo nazi, que em breve dominaria a Alemanha, cujas diferenças, tanto irritaram Hitler, que queria um país de uma só raça, uma raça superior, a raça ariana,


August Sander, Membro da juventude Hitlariana, 1941

e que por isso mandou destruir grande parte dos seus negativos?

Mas Ribalta vai mais longe, e na entrada desta mesma sala, “España Tipos e Trajes” de José Ortiz Echagüe, ocupam uma das paredes. No texto do livro, publicado em 1933, lemos o seguinte: “Entre un vasco del Norte y un adaluz, entre un gallego y un valenciano hay tanta diferencia como puede existir entre un habitante de Alaska y un gaúcho de la Pampa”, e nas páginas seguintes, de terra em terra, “(…) dejando Extremadura trapasamos la Sierra de Gata …dejando Navarra y corriéndonos hacia el país vasco...”, Echagüe, com um interesse em “hacer una historia documentada del indumento popular español”, regista a imensa riqueza de “un país que no se preocupa excessivamente de sus tradiciones”.






Que faz Echagüe, “com as imagens idealizadas de uma Espanha petrificada e a-histórica de José Ortiz Echagüe, para resgatar costumes enraizados (como nas imagens do folclore “progressivo”, na Itália pós-facista”, (vd, Jornal Expresso de 14/03/09), junto de Sander e de “Mass Observation”?

Intuía Echagüe, já uma divisão da Espanha, numa época em que o país, desembaraçado da monarquia desacreditada de Primo de Rivera, vivia numa República, que euforicamente o povo proclamara, (1931)?
Temia Echagüe, que em breve, a sua Espanha, que ele via como “una inmensa riqueza …de civilizaciones sucesivas han venido depositando en el áspero y descarnado suelo Ibérico”, seria ensombrada por uma terrível guerra civil, (1936)?
Intuía ele que “en este variadísimo y grandioso escenario, civilizaciones sucesivas han depositado su cultura” poderia em breve desaparecer e sofrer divisões, pelas reivindicações autonomistas e separatistas, entre bascos e catalães, que ainda hoje a atormentam?

A riqueza desta sala, neste diálogo de projectos, aparentemente tão diferentes, está em precisamente, nos deixar, a cada um de nós, fazer a interpretação que quisermos.


Ler mais...