quarta-feira, abril 30, 2008

A geração de Maio de 68

No ano passado, em Novembro, realizou-se em Bamako, na capital do Mali, a sétima Bienal de fotografia africana. A cidade foi o tema escolhido e a Finlândia o país convidado. “Todos os dias os africanos tem nas suas mãos um pedaço da Finlândia: o seu telemóvel portátil Nokia” dizia numa entrevista um dos organizadores e acrescentava “a essência da Bienal é mostrar uma outra imagem de África, e sair de um certo estereótipo do sacro santo preto e branco de Seydou Keita ou Malick Sidibé”, e o nadador de Samuel Fosso, dos Camarões, ilustrava as revistas da especialidade.
Samuel Fusso, Le Maître nageur, série Tati, 1997

Em paralelo, a 52ª Bienal de Veneza premiava Malick Sidibé, do Mali, com o prémio Lion d’or, o primeiro artista africano a receber esta recompensa, e a fotografia “Combat dês amis avec pierres”, 1976, a escolhida para ilustrar as revistas de arte contemporânea.
O comissário americano, Robert Storr, abria pela primeira vez as portas da Bienal de Veneza ao continente africano. Considerando-se um autêntico “soixante-huitard”, Storr confrontou as várias gerações de artistas.

Malick Sidibé, considerado no seu país, Mali, um estereótipo do passado, era premiado em Veneza. Ironias…

E o mundo mudou com a geração “soixante-huitard”.

Passemos agora para a Europa, a Europa dos anos sessenta, onde uma geração crescia em segurança, e sonhava viajar para países exóticos. Ouviam música nos seus transístores portáteis e compravam os discos favoritos que ouviam nos programas de rádio. Os programas de rádio, emitidos nos grandes aparelhos que ocupavam um lugar de destaque nas salas de estar, deixou-se de ouvir em família, e a nova geração podia ouvir agora os programas que queria nas suas rádios portáteis. Se a “Swinging London” ditava as modas, os americanos não se deixaram ficar atrás: Em Maio de 63, no Marche aux Puces, vendia-se pela primeira vez as Levi’s genuínas, e a procura ultrapassou de longe a oferta. Jeans e mini saias, vestia agora a nova geração.
Os Europeus assistiam a um crescimento económico, medido por novos indicadores, o PIB, Produto Interno Bruto, e tinham agora acesso a uma gama de produtos que os consumidores americanos já estavam familiarizados: telefones, electrodomésticos, televisão, máquinas fotográficas, vestuário, transístores, gira-discos, carros…e o boom do consumismo passou a ser um modo de vida. Os adolescentes, “teenager” como lhes chamaram na América, existiam agora como um grupo distinto, que nunca tinha existido. Na geração anterior, era-se criança até sair da escola, e tornavam-se adultos quando começavam a trabalhar. Com a escolaridade prolongada e com dinheiro para gastar, as agências de publicidade não perderam a oportunidade para os aliciar. Apareceram revistas destinadas aos adolescentes e a publicidade cresceu na ordem dos 400% nesses anos sessenta. A economia, que até aí era baseada na agricultura, passava para uma economia de serviços, e a mulher entrava no mundo do trabalho, a dona de casa passava à história e o fosso entre as gerações acentuou-se. As cidades enchiam-se de jovens que abandonavam as terras para aí trabalhar e estudar, e as universidades ficaram a abarrotar.

Regressemos novamente a África, aos anos sessenta, que a nova geração de Bamako agora prefere esquecer e que julga que a globalização chegou com os telemóveis Nokia.
Em 1960, o Mali que fazia parte do Sudão Francês obtinha a independência. Malick Sidibé, nos finais da década de 50 começa a trabalhar em Bamako como assistente do fotógrafo francês Gérard Guillat, de alcunha “gégé la pellicule”. Será gégé influência de yé-yé?. Em 62 abre o seu estúdio, e dedica-se a fotografar as festas de uma geração que dança o twist ao som da música dos gira-discos portáteis,
Malick Sidibé, Twist, 1965
Malick Sidibé, 1962
Malick Sidibé, Chez Mlle Colette, 1964
que faz de disco jokey,
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
usa mini saia e jeans,
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
Malick Sidibé, yeye, 1963
anda de mota,
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
e se diverte como os ocidentais.
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
No dia seguinte, iam ao estúdio e escolhiam as fotografias que Sidibé numerava e colava em cartões e afixava nas paredes.
Em 2006, Jérôme Sother da Steidl, encontrou empilhados a um canto no estúdio de Sidibé, em Bamako, centenas destes cartões.
Malick Sidibé, do livro Chemises, 2007
“Chemises”, o livro editado no ano passado, selecciona os melhores. Para Sother estas fotografias constituem um documento único da sociedade de Bamako desses anos.

A geração de 60 transbordou da Europa e chegou a todo o mundo, e o mundo mudou com a geração “soixante-huitard”.

Charles de Gaulle, que um dia disse ser o guia dos franceses, julgou a nação satisfeita, os adolescentes dançavam, o desemprego baixava, a economia crescia, mas o que De Gaulle não viu, foi que esta geração farta de ser guiada estava prestes a revoltar-se,
Christer Strömholm
e no próximo post, que já é Maio, vamos então para a rua.

Ler mais...

sábado, abril 26, 2008

Maio de 68 e as guerras que antecederam a revolta

Dois anos depois de terminada a Segunda Guerra, 1947, Robert Capa concretizava um sonho antigo, juntamente com Henri Cartier-Bresson, David Seymour, George Rodger e William Vandivert, criava a agência Magnum.

Terminava a guerra, falava-se em pós-guerra, e criava-se uma agência cujo objectivo principal - era cobrir as guerras no mundo.

Britânicos, Franceses, Holandeses, Belgas, que no fim da guerra tinham dificuldade até em alimentar-se, continuavam a governar parte do mundo. As suas colónias, em África, Ásia e no Médio Oriente, eram um bálsamo para os sofrimentos e humilhações porque tinham passado na guerra. Os políticos que só de nome conheciam tais povos, ignoravam o sentimento nacionalista que crescia rapidamente no seio das suas colónias e nenhum deles antecipou o colapso iminente das suas possessões e da sua influência no ultramar. Os políticos tinham a ideia, que dar a independência das colónias seria, como dizia o Ministro trabalhista britânico “dar a uma criança de dez anos a chave de casa, uma conta bancária e uma espingarda de caça”.
Se a Holanda queria manter a Indonésia, os Britânicos o seu império, os Belgas o Congo, os Franceses queriam manter o seu poder na Síria, na África subsariana, e acima de tudo queriam manter as suas “jóias” da coroa, a Indochina e a Argélia. Nesses anos, a Argélia em particular, era apresentada aos alunos como uma extensão administrativa da própria França e o inverso também,
Robert F. Sisson, National Geographic Society, Junho 1960, Ektachromes
e o mundo Ocidental via com os mesmos olhos tal prolongamento geográfico. Em Junho de 1960, em plena revolta e em véspera da independência, 1962, a revista americana “National Geographic” num artigo “Algeria Faces Problem and Promise”, escrevia em nota de rodapé desta fotografia o seguinte: A bit of Paris in Algiers,
Robert F. Sisson, National Geographic Society, Junho 1960, Kodachrome.
e na rua Michelet, cheia de lojas luxuosas e com as últimas modas vindas de Paris, os estudantes universitários bebem vermouth e soda, não fosse a mulher vestida de rosa, que dá um ar não gaulês, julgaríamos estar em Paris (sic).
Nesta outra fotografia acrescento, não fora os dois soldados lá mais atrás, e julgamos estar em Marselha, junto à Unidade de Habitação de Le Corbusier.
Robert F. Sisson, National Geographic Society, Junho 1960, Kodachrome

Mas em relação à Indochina o sentimento não era o mesmo. Marguerite Duras, no seu pequeno grande livro “O Amante”, descreve melhor que ninguém esse sentimento: “Os navios subiam o rio de Saigão, de motores parados, puxados por rebocadores até às instalações portuárias que ficavam naquele cotovelo do Mékong à altura de Saigão. Esse cotovelo, esse braço do Mékong, chama-se o rio, o Rio de Saigão. A escala era de oito dias. Assim que os barcos atracavam, a França aí estava. Podia-se ir jantar a França, dançar, era demasiado caro para a minha mãe e além disso para ela não valia a pena, mas com ele, o amante de Cholen, podíamos ter lá ido”.
Os franceses não estavam há muito tempo naquela região, só em 1919, com a vitória da Primeira Guerra, é que beneficiaram com a redistribuição das possessões asiáticas.

Em 2 de Setembro de 1945, logo após o pós-guerra, Ho Chi Minh, o líder nacionalista vietnamita proclamou a independência do seu país. Um mês depois as tropas francesas chegavam a Saigão. A Indochina tinha pouco sentido para a maioria do eleitorado francês, e o governo encetou conversações com os nacionalistas no sentido de negociarem uma independência. Em Junho de 1946, o almirante francês Thierry d’Argenlieu, sabotou o governo e proclamou a separação da Cochinchina (a parte sul) do Norte, rompendo as negociações com Ho Chi Minh. Começava a guerra no Vietname. Mas a França, debilitada economicamente, nunca poderia sozinha sustentar essa guerra e a guerra na Indochina foi sustentada pelos americanos. Em 1954, Washington acabou com o apoio, e os franceses depois de uma luta infrutífera e sangrenta viram-se obrigados a um cessar-fogo. Em 21 de Julho de 1954 assinavam um acordo em que se comprometiam a abandonar a região. Poucos franceses lamentaram a perda da Indochina, porque foram os seus soldados que lá combateram e morreram. Mas se os franceses não lamentaram a retirada, os fotógrafos de todo o mundo lamentaram a perca de Robert Capa, que morreria na Indochina a 25 de Maio de 1954, pouco antes do acordo assinado. Capa não mais regressaria dessa estrada
Robert Capa, Indochina, 1954
e a Magnum perdia o seu dirigente.

Imagens da Indochina? O saisdeprata-e pixels rende-se à literatura, a Duras, pois não há fotógrafo que a supere na descrição do povo: “No passeio, a multidão vai em todos os sentidos, lenta ou viva, abre passagem, é peganhenta como cães abandonados, é uma multidão da China, revejo-a ainda nas imagens da prosperidade de hoje, na maneira que eles têm de caminhar juntos sem impaciência, nunca, de se encontrar na multidão como se estivessem sós, sem felicidade dir-se-ia, sem curiosidade, caminhando sem ter o ar de ir, sem intenção de ir, mas somente de avançar aqui em vez de ali, sós, na multidão, nunca sós ainda por si mesmos, sempre sós na multidão”, na descrição da paisagem: “É, portanto, durante a travessia de um braço do Mékong na barcaça que está entre Vinhlong e Sadec, na grande planície de lama e de arroz do sul da Cochinchina, a das Aves. Desço do carro. Vou à amurada. Olho o rio. A minha mãe dizia-me às vezes que nunca, em toda a minha vida, voltarei a ver rios tão belos como aqueles, tão grandes, tão selvagens, o Mékong e os seus braços que descem para os oceanos, estes territórios de água que vão desaparecer nas cavidades dos oceanos. Na planura a perder de vista, estes rios vão depressa, vertem como se a terra se inclinasse”, na descrição das casas: “A casa está construída num terraplano que a isola do jardim, das serpentes, dos escorpiões, das formigas vermelhas, das inundações do Mékong, as que se seguem aos grandes tornados das monções. Esta elevação da casa acima do solo permite lavá-la com grandes baldes de água, banhá-la toda como um jardim. Todas as cadeiras estão em cima das mesas, a casa toda escorre, o piano do salão pequeno tem os pés dentro de água. A água desce pelos patamares, invade o pátio em direcção às cozinhas”, na passagem directa da infância para a maturidade: “Aos dezoito anos envelheci…este envelhecimento foi brutal”, e finalmente na descrição de uma sociedade, com uma moral hipócrita, que a nova geração na rua, em Maio de 68 condenaria: “A minha mãe só tira fotografias aos filhos. A mais nada. Não tenho fotografias de Vinhlong, nem uma, do jardim, do rio, das avenidas direitas, orladas pelas tamareiras da conquista francesa, nem uma,…Nunca tirava fotografias aos lugares, às paisagens, só a nós, os seus filhos, e a maioria das vezes, em grupo para que a fotografia fosse mais barata…Misteriosamente, minha mãe mostra as fotografias dos filhos à família dela, durante as férias. Nós não queremos ir com ela ver a família. Os meus irmãos nunca a conheceram. A mim a mais nova, dantes arrastava-me até lá. E depois nunca mais fui, porque as minhas tias, por causa do meu comportamento escandaloso, já não queria que as filhas me vissem. Assim não resta a minha mãe senão mostrar as fotografias, assim a minha mãe mostra-as, logicamente, ajuizadamente, mostra às suas primas direitas os filhos que tem”.

Chim, David Seymour, com a morte de Capa assume a presidência da Magnum, mas por pouco tempo, dois anos depois, em 1956, na desastrosa guerra, a do canal do Suez, contra o Egipto de Nasser, que a França, Grã-Bretanha e Israel conspiraram nas costas de Eisenhower, perdia também a vida.
David Seymour, Port Said, 1956
David Seymour, Port Said, 1956
David Seymour, Port Said, 1956, julga-se que esta foi a sua última fotografia.
A geração que se revoltaria em Maio de 68 vivia uma guerra à distância, e da geração mais velha da Magnum, ficou Cartier-Bresson, para testemunhar em França, a revolta estudantil de Maio de 68.
Henri Cartier-Bresson, Maio de 68

Mas antes de regressarmos às revoltas nas ruas de Paris, e à geração dos novos fotógrafos, ainda nos falta ir a África, e surpreendermos como em Bamako no Mali, na antiga colónia francesa, Malick Sidibé fotografa as festas da geração de 60, que mais parecem no Ocidente.

Ler mais...

quarta-feira, abril 23, 2008

Maio de 68 e o cinema

Comprei sexta-feira passada, juntamente com o jornal Público, o DVD, “A Máscara”, 1965, de Ingmar Bergman. Filmado vinte anos depois da Segunda Guerra Mundial, a ambiguidade do mal é evocada a partir de uma das fotografias mais chocantes e conhecidas do gueto de Varsóvia.
Jürgen Stroop, Ghetto, Maio 1943

Bergman detêm-se na imagem e lentamente, durante alguns minutos, olhamos os vários olhares.
Ingmar Bergman, do filme A Máscara, 1965

O homem é cruel, o mundo uma desilusão. Bergman pertence à geração que viveu os horrores de uma guerra que deixaram marca. Nos primeiros minutos do filme, numa série de imagens que se sobrepõem, cadáveres filmados em grande plano,
Ingmar Bergman, do filme A Máscara, 1965

carneiros degolados esvaindo em sangue, as vísceras sob a carne esventrada,
Ingmar Bergman, do filme A Máscara, 1965

lembram a série recente, “ A Morgue” de Andres Serrano
Andres Serrano, da série A Morgue
Andres Serrano, da série A Morgue
Andres Serrano, da série A Morgue
Andres Serrano, da série A Morgue

e as fotografias na época da guerra de Frederick Sommer.
Frederick Sommer, Coyote, 1945
Frederick Sommer,C hicken Parts, 1939

Se em “A Máscara”, Bergman capta o espírito da sua geração, uns anos antes, em “Mónica e o Desejo”, 1953, Harriet Andersson, (Mónica), simboliza o desejo de liberdade da futura geração.

Em 1958 a Cinemateca Francesa dedicou uma retrospectiva a Ingmar Bergman. Jean-Luc Godard, no Cahiers du cinema escreve sobre o filme : “Em que é que estávamos a pensar quando Mónica e o Desejo estreou nos ecrãs parisienses?” na revista Arts escreverá “Mónica e o Desejo é o filme mais original do mais original dos cineastas.” . O filme de Bergman antecipa “Pedro, o Louco”, 1964, de Godard, onde a sensação de liberdade, sol, mar, tem como pano de fundo a grandiosidade da Natureza. É proibido proibir, Belmondo, no carro descapotável olha para trás e diz a Anna Karina “estou a olhar para os espectadores”. Filmado em planos sem continuidade, a alusão à publicidade
Jean-Luc Godard, do filme, Pedro o Louco, 1964

e à guerra do Vietname uma constante, com será também uma constante nas manifestações de Maio de 68.
Jean-Luc Godard, do filme, Pedro o Louco, 1964

O filme retrata o espírito de liberdade da geração de 60, onde também as juke-box substituíam os conjuntos de música ao vivo.
Jean-Luc Godard, do filme, Pedro o Louco, 1964

“Pedro, o Louco” foi visto, por 300.000 pessoas, aquando da estreia, durante as oito semanas de exclusividade para Paris. Três anos depois, 1967, “O Maoista”, antecipa, de forma surpreendente o Maio 68.
Jean-Luc Godard, do filme, O Maoista, 1967

Godard filma os estudantes no subúrbio de Nanterre, onde a revolução está prestes a eclodir. “Acho que temos de ser diferentes dos nossos pais. O meu pai por exemplo lutou contra os alemães na guerra e agora é gerente de um clube mediterrânico. Sim, sim, as ideias de Mao podem-me ajudar”, dirá Guillaume no primeiro capítulo.
Jean-Luc Godard, do filme, O Maoista, 1967

A descrição da vida na província desses anos, é retratada por Yvonne. “Nos Verões levantava-me às cinco horas da manhã, e no Inverno às sete. Acendia o fogão e depois ia à leitaria,…, limpava a estrebaria, fazia o almoço, lavava a loiça e a roupa…tratava dos vitelos. Vim para Paris em 1965, fazia limpezas mas também me prostituí. Comprei com esse dinheiro um Fiat 850 descapotável”. Godard filma os estudantes que ouvem a rádio Pequim, lêem e analisam o livrinho vermelho “que faz tudo mexer”.
Jean-Luc Godard, do filme, O Maoista, 1967

Viver em França nesses dias “não é como os nossos pais que viviam na guerra sob o domínio de Hitler”. Godard filma a geração que odeia o sistema, que quer fechar as Universidades, que quer recomeçar do zero, mas, e sobretudo, uma geração, que para ele Godard não sabe o que fazer depois da revolta. E um ano antes, nos ecrãs de cinema, os franceses assistiam antecipadamente ao Maio de 68.

Na Europa, a década de 50 foi a idade de ouro do cinema, a principal fonte de entretenimento. Em França abriram mil novas salas de cinema e ia-se ao cinema várias vezes na semana. No pós-guerra os melhores filmes europeus tratavam inevitavelmente de uma forma ou de outra da guerra. Em “Roma: Cidade Aberta”, 1945 e “Alemanha ano zero”, 1947, Rosselini usou os danos e a destruição das cidades como cenário, e os filmes reflectiam não tanto o mundo europeu como era na altura, mas um mundo atravessado pelas memórias e os mitos do tempo da guerra. Mas se a velha Europa, descrita por Yvonne em “O Maoista”, estava a desaparecer, no cinema, Bergman, inovava com “Mónica e o Desejo”. O sentimento de continuidade, segurança e confiança, que a geração que vivera a guerra reclamava, lutava agora contra uma modernidade e mudança proposta nos filmes da Nouvelle Vague. Mas a maioria dos filmes, vinham do outro lado do atlântico, 40% do rendimento da indústria cinematográfica dos Estados Unidos era gerado na Europa, e alguns dos filmes mais populares no início da década de 50, foram, como os franceses os designaram mais tarde, os film noir. A história sempre muito simples, os orçamentos eram escassos, era policial ou um drama social, mas o estado de espírito era negro e sombrio.
Cindy Sherman, (n. 1954), no outro lado do atlântico, estudante numa escola de arte em Buffalo, sentou-se em frente a um fotomatón e deixou-se fotografar pela câmara.
Cindy Sherman, 1975

A sua cara, mais parecia a cara de Lucille Ball do que a sua. Nesses anos, “I Love Lucy”, entretinha as audiências televisivas, vivia-se uma nova era, a era da televisão. Sherman, nasce nos anos 50, mas é a geração que cresce nos anos 60 a ver cinema e televisão. Mascarar-se, imaginar-se outra, transformar-se naquilo que vê nos filmes seduziu-a. No seu trabalho Sherman vai encarnar todo o tipo de personagens femininas que vê nos filmes e na televisão, é o impacto e poder das imagens na nova geração.
Em 1977, já em Nova Iorque, inicia a série “Untitled Film Stills”. Sherman transforma-se em mulher sedutora, vestida de combinação e um copo de Martini na mão,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #7, 1977-80

em bibliotecária que mais parece retirada de um filme da série B,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #13, 1977-80

numa jovem secretária na cidade,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #21, 1977-80

em mulher inocente, fatal,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #31, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #11, 1977-80

em mulher trabalhadora como nos filmes neo-realistas italianos,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #35, 1977-80

voluptuosa, angustiada, perdida, decidida, sexy,
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #34, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #52, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #30, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #48, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #16, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #6, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #15, 1977-80

moderna, como num filme da Nouvelle Vague
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #49, 1977-80

e em todos os stills a heroína é-nos familiar, mas nunca a identificamos com nenhum filme específico, Sherman deixa que cada um imagine o que quiser, e nestas duas fotografias, o som compassado dos passos na escuridão acompanham a vítima tal como num film noir
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #54, 1977-80
Cindy Sherman, da série Untitled Film Stills, #55, 1977-80
Regressamos à ambiguidade de “A Máscara”, onde Bergman troca Elisabeth Vogler, (Liv Ullmann), por Alma, (Bibi Andersson). Bergman, nesses anos, inovava ao colocar em crise o cinema narrativo, Sherman, ao fotografar-se representando diferentes estereótipos femininos inverte o sentido do auto-retrato e utiliza a fotografia não para revelar o verdadeiro eu da artista, a utilização do auto-retrato como género, mas para mostrar o eu como uma noção imaginária, é o poder das imagens na geração de 60.
“A fotografia é verdade. O cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”, disse Jean-Luc Godard. Será verdade?

Ler mais...