segunda-feira, junho 23, 2008

"O melhor dos mundos"

Na Primavera de 1929, a nova fotografia alemã, apelidada de Nova Visão, atingia a sua apoteose com a exposição “Film und Foto” em Estugarda. A mobilidade do olhar do fotógrafo moderno, a premissa deste novo movimento, é bem visível na capa do catálogo que acompanhou a exposição: “Es kommt der neue Fotograf!” de Werner Gräff.

A fotografia deste homem, inserida no círculo, (signo universal do movimento), de uma objectiva, é tirada de um ângulo inédito para ressaltar a ideia do fotógrafo moderno, dinâmico, que anda e se movimenta na cidade. László Moholy-Nagy, um dos impulsionadores do movimento, tira da janela de um prédio esta fotografia, no primeiro dia do ano de 1930.

Moholy-Nagy, "7 AM(New Year's Morning), 1930
Nesta rua, quase deserta, (são 7 horas da manhã como nos informa a legenda), padeiro e casal, que certamente regressam de uma festa, movimentam-se com toda a liberdade, não respeitando a geometria imposta da cidade. Em oposição a tanta liberdade, André Kertész, em Tóquio, fotografa estes peões, que mesmo debaixo de chuva, fazem fila e seguem a seta.

André Kertész, "Jour de pluie, Tokyo", 1968
Em 1965, o fotógrafo, Volkmar Wentzel, da revista National Geographic, olhando com a mesma perspectiva das fotografias anteriores, de cima para baixo, tira estas duas fotografias de Lisboa.


A primeira, nas avenidas novas, os peões caminham nos passeios rectilíneos, não fora a senhora com a criança pela mão, que prefere não usar a passadeira, a cidade moderna parece impor a sua ordem. Mas nesta outra fotografia, uma vista do Parque Eduardo VII, todos, excepto o homem vestido de negro, ao fundo à direita, preferem deambular pela relva em lugar dos caminhos rectilíneos que atravessam o parque, também este demasiado geométrico.

E aqui fazemos um paralelo com a arquitectura, através da célebre “promenade architecturale” de Le Corbusier, que o Museu Berardo apresenta agora uma retrospectiva. E na exposição, num ecrã, é passado o filme “Architecture d’aujourd’hui”, 1930, de Pierre Chenal. Chenal filma várias moradias de Le Corbusier para acentuar as vistas de diferentes perspectivas. Se no terraço da Villa Church, duas mulheres e um homem fazem a sua ginástica moderna ao ar livre, o desporto era visto à época como uma actividade física do homem moderno, na Villa Savoye em Poissy,1929, uma mulher, conduz-nos pela rampa, num circuito que nos obriga a uma visão em movimento, tal como neste desenho de Herbert Bayer.

E no cimo, no terraço, esta janela enquadra, tal como numa fotografia, a paisagem circundante.

O filme traduz, de forma magnífica, a experiência concreta da visão em movimento, onde a perspectiva tradicional, é preterida, por esta “promenade architecturale”, de um olho que caminha, tal como o olho do fotógrafo na cidade. A arquitecta Beatriz Colomina,foi a primeira a insistir no cruzamento da fotografia com a arquitectura moderna, ao enfatizar a importância do modelo fotográfico em Le Corbusier: “O espaço não é feito de muros, mas de imagens, que para Le Corbusier é a actividade primordial numa casa. A casa é um dispositivo para olharmos o mundo, um mecanismo de visão…um sistema para captar imagens…”.
Mas a “promenade architecturale” extravasa o interior dos edifícios,

Projecto em construção Epul-Jovem, Atelier Promontório, Lisboa 2008
a arquitectura aprecia-se enquanto andamos,

porque é na caminhada que o nosso olho é estimulado pelas variações inesperadas que o edifício nos oferece, provocando muitas vezes o espanto com os diferentes enquadramentos.

Olhando um edifício de frente, mesmo de um ponto de vista privilegiado, num olhar limitado às regras da perspectiva tradicional,

o edifício torna-se estático, e nem as sombras das varandas substituem a riqueza das impressões da caminhada.
Mas o homem-bicho gosta de se rever nas coisas, e no campo, longe das cidades, a agricultura parcelara a natureza, mas fizera-o de modo orgânico, e o homem não se queixou. Nas cidades, arquitectos e urbanistas imaginam a cidade ideal e nada é mais passageiro do que as utopias. A cidade radiosa, ideal, de Le Corbusier, de grandes blocos verticais implantados em zonas verdes, seriam a solução do problema habitacional.

Exposição Le Corbusier, Museu Berardo
O homem moderno, que sabe o que quer e para onde vai, caminha a direito, em linha recta, à semelhança do homem da capa do catálogo. Geometria e ordem prometiam rigor, não a salgalhada romântica das cidades históricas italianas.

Giovanni Chiaramonte, Gibelina, 1989

Giovanni Chiaramonte, Rieti, 1990
Mas as vidas humanas não são traçadas a régua e esquadro, o que a arquitectura dita, as ciências sociais rejeitam, e os bairro ideais, “o melhor dos mundos”, como vendiam os postais à época,refotografados por Mathieu Pernot,


são hoje, através das implosões, transformados em pó, e recomeça-se do início.

Mathieu Pernot,exposição Utopia, Museu Berardo

Numa outra sala, a exposição - Utopia, no mesmo Museu Berardo, co-produzida com a PhotoEspaña 2008, o islandês Arni Haraldsson, cujo trabalho fotográfico se centra na localidade de Firminy, em França, cidade onde Le Corbusier construiu vários edifícios, e onde a igreja de Saint-Pierre, ficou inacabada,

Arni Haraldsson, Incomplete Church of Saint-Pierre (1960-74) de Le Corbusier, 1999-01
“o espaço que não é feito de muros mas de imagens”, não é esquecido.

Arni Haraldsson,Stairwell Window, Unité d'Habitation, 1999
Mas no presente, o que Haraldsson nos transmite deste passado recente, é o desencanto e o fim destas cidades definidas pelos princípios modernistas da vida urbana,

Arni Haraldsson,Unité d'Habitation, 1999

Arni Haraldsson, Unité d'Habitation, 1999
e os corredores da Unidade de Habitação de Firminy, iguais em todos os pisos, fazem lembrar os corredores de uma prisão.

Arni Haraldsson, Internal Street, North Wing,Unité d'Habitation, 1999
Diz a sabedoria popular, que Deus escreve direito por linhas tortas e enquanto o homem não for projectado em forma de cubos e as mulheres em forma de esferas – à maneira da Bauhaus – nada está em condições de funcionar, e os peões, que se passeiam na relva no parque em Lisboa sabem-no melhor que ninguém.

6 comentários:

almagrande disse...

"Bonjour Tristesse.."

João Luís Ferreira disse...

Madalena,
Há cidades ideais, desenhadas a régua e esquadro que nem nos apercebemos da sua crueza por virtude da sua implantação, pelo modo como se adaptam à topografia e pela sua inserção em tecidos urbanos existentes. As cidades criadas de que Caminha é um exemplo, foi traçada a régua e esquadro na sua fundação, assim como a Baixa de Mardel, dita pombalina, mesmo no centro de Lisboa. A Beleza da cidade espontânea (medieval, por exemplo) e a cidade da renascença, ou posteriormente, do higienismo, como Paris, não correspondem apenas a modelos contraditórios ou opostos entre si. Correspondem a formas diferentes de conceber o espaço e, em muitos casos, em momentos de intervenção no espaço público diferentes e por razões diferentes. No caso da arquitectura da Baixa de Lisboa, em pleno século das Luzes tratava-se, sobretudo, de implantar num espaço destruído um modelo racional que não podia permanecer como um vazio urbano e que não fazia sentido reconstruir com uma geometria e uma "espontaneidade" fabricada. Correspondia, também, a uma forma de pensar a cidade ideal tendo tido em atenção, e isso será um factor da sua Beleza, a ligação à cidade que permaneceu incólume e à topografia. Um sistema de ritmos, de construção e de proporção aparentemente rígido criou uma "razão", um módulo, um ritmo e desenvolveu-o encosta a cima acabando por lhe conferir um organicismo inesperado, mas que hoje em dia nos parece quase natural. O mesmo terá acontecido com as, à data tão criticadas, intervenções de Hausman em Paris. Mas quem se passeia em Paris ou na Baixa lisboeta não sente essa ditadura do urbanismo de régua e esquadro e percebe que a arquitectura corresponde a uma estática enquanto factor de memória e de representação do espaço que se sobrepõe e vence a inexorabilidade da passagem do tempo. É a repetição como factor identitário que acaba por conferir carácter a uma cidade e a faz vencer as modas do tempo. E a "promenade architectural" rejuvenesce o viajante que passando em lugares que permanecem não sente o passar do tempo mas antes a sua persistência.

Anónimo disse...

Obrigado, Madalena!

Pelo 250º post, pelos quase 21 meses de blog, por estas leituras e visões tão lúcidas, tão claras, tão profundas, pelas imagens valiosas e vastas.

Parabéns.

António Bracons

Madalena Lello disse...

Hoje ninguém tem dúvidas que a cidade ideal proclamada por Le Corbusier não funcionou, as implosões dessas cidades desenhadas a régua e esquadro, são uma realidade, e os postais de Pernot, que estão em exposição, são reveladores dessa crueza. Na Unidade de Habitação de Firminy, fotografado por Arni, uma das alas está hoje desabitada, assente em “pilotis”, o vento tornou-se insuportável para os habitantes. Porém no filme, sobre a UH de Marselha, é explicada as vantagens funcionais dos “pilotis” - facilitam a circulação. O funcionalismo, será possível saber se a aplicação dogmática deste princípio teve êxito? Basta entrar nesses apartamentos, como vemos no filme, para se perceber melhor a contestação promovida pelos habitantes quando para lá foram viver, a queixa principal – a falta de privacidade. As consequências nefastas da planta livre e da organização espacial - tudo era tão funcional - que os quartos de dormir das crianças não são mais que arrumações com portas de correr para a sala, vejam bem o filme…
Vamos agora para a rua, para a Baixa lisboeta. Segundo Júlio de Castilho, antes do terramoto, fazendo o percurso mais rápido, demorava-se hora e meia a pé do Rossio ao Terreiro do Paço, concordo que seria completamente absurdo reconstruir tal labirinto, mas será que a régua e o esquadro foram a solução? A recta, do homem moderno, que sabe o que quer, não transformou hoje essas ruas em verdadeiras vias rápidas?
Le Corbusier, proclamou a morte da “rue-corridor”, a rua tradicional das cidades, onde casas, peões e carros se misturavam. Funções separadas reclamam vias separadas, o seu lema. Ao longo da história da fotografia é constante o fascínio dos fotógrafos pelo que está na iminência de desaparecer, os apelidados humanistas, Iziz, Doisneau, Ronis…pressentiram que a “flânerie urbaine” estava em vias de desaparecer, e registaram-na, o Boulevard Haussman nunca aparece, como em Atget nunca aparece a Torre Eiffel, sabiam e bem o que iria resistir, o que o não significa que seja o melhor...
Não é raro ver hoje no centro de Lisboa, (veja-se os edifícios junto à embaixada americana em sete rios) cujo acesso é directo para vias de circulação rápida, sai-se de casa de carro, a pé corre-se risco de vida…
Enfim Le Corbusier despojou a cidade de um local de acasos, surpresas, solicitações, encontros imprevistos - a sua cidade ideal matava a “flânerie urbaine”.
O João Luís é arquitecto, como revela no seu perfil, eu não sou arquitecta, mas um mero peão, uma habitante da cidade, e aqui entram dois modos de ver o mundo, a cidade. Para si “é a repetição como factor identitário que acaba por conferir carácter a uma cidade e a faz vencer as modas do tempo”, o arquitecto, ao longo de toda a sua vida de trabalho profissional, deixa indelevelmente inscritas nas suas obras um determinado número de regras. O habitante, que vive segundo uma outra filosofia e uma outra razão, a sua própria, baseada sobre o sentido da apropriação, essa racionalidade, própria do arquitecto, não deixa no entanto de se lhe impor e é nesta imposição de princípios e regras contraditórias, que surge a fonte de conflito permanente entre arquitecto e habitante. O habitante da cidade percepciona a realidade a partir dele mesmo, o arquitecto percepciona a realidade a partir do conhecimento que adquire do espaço. É possível ultrapassar esta contradição? Julgo que sim, se os arquitectos se aperceberem que os seus edifícios devem ser projectados atendendo às necessidades reais do homem e não apenas aos aspectos funcionais.
Por último, o João Luís há dias deixou, aqui neste blog este comentário que não deixa de ser curioso atendendo ao comentário de hoje “A imagem dos bois a puxar o arado desapareceu de facto do mundo mecanizado. O progresso conduziu ao divórcio do homem e da natureza. Os operários submeteram os camponeses. A indústria submeteu a agricultura. O turismo condiciona a paisagem. A mecanização submete a vida. O homem sofre. E já não sabe sequer porquê. As fotografias de Bresson a cores são muito sugestivas deixou em comentário”.

“Bonjour Tristesse”, como escreve almagrande no seu comentário de hoje..

Anónimo disse...

O tempo frio
Aumenta a dor
Meu coração
Distante
Tão distante
Do meu amor

http://prixhoje.blogspot.com/

Anónimo disse...

Madalena, por favor, me corrija se eu estiver escrevendo algo errado. Sobre o modo de fazer "ver" a cidade: a pintura nos apresenta a arquitetura de uma forma fragmentada. O mesmo acontece com a fotografia. O cinema talvez nos permita imaginar um olhar mais próximo, mais real. Uma obra de arquitetura incorpora experiências de outras arquiteturas. Mas do ponto de vista funcional como estabelecer uma visão de mundo que corresponda com a visão, tão peculiar dos arquitetos, dentro de sua lógica interna enquanto arte?

Gostaria muito de sua ajuda para preparar um post sobre a "gaiola de ferro" da cultura moderna. Qual o fotógrafo exemplificaria melhor a idéia da "construção" do desenvolvimento?
Obrigada, é sempre muito bom vir aqui.