sábado, junho 28, 2008

Big Brother

Em 1929, para a exposição internacional de Barcelona, o Estado alemão encomendou a Ludwig Mies van der Rohe, um pavilhão para representar o país. A pergunta que Mies fez ao ministro - “o que se vai expor?”, teve como resposta: “nada, o pavilhão será a exposição”, e sem um programa, como era habitual, o pavilhão tornou-se na própria exposição. A estrutura, feita de paredes em vidro, era inovadora.

Desmantelado após a exposição mas reconstruído em 1992, quem olha do exterior, julga estar no interior, mas o reflexo nos vidros, com as nuvens, o céu e as árvores por trás, lembram o visitante que ele está no exterior. Este efeito misterioso, a impressão de se estar simultaneamente no interior e exterior do edifício, foi pouco notada à época. Os jornalistas profissionais que escreveram para as revistas da especialidade, não repararam nesta arquitectura virtual. O arquitecto José Quetglas, foi dos poucos que colocou a questão: “será que o pavilhão não tem interior, ou será que o interior é o exterior?”. Só anos mais tarde, 1947, quando o Museum of Modern Art (MoMA), dedica uma exposição a Mies, comissariada por Philip Johnson, o pavilhão foi então considerado como a mais bela obra de arquitectura do século.
E na América, a arquitectura em vidro, janelas que substituem as paredes, entrou na moda. Na sua famosa, Farnsworth House, (1946-50) Mies substituía as quatro paredes por vidros, mas a casa, rodeada por um grande jardim, estava resguardada dos olhares exteriores. Já nos subúrbios, as largas janelas em vidro, eliminavam toda e qualquer privacidade familiar, e o ver e ser visto, passou a fazer parte de vida quotidiana dos baby boomers.

Este foi o texto que comecei por escrever para o post anterior, a falta de privacidade sentida nestas casas nos subúrbios era associada à falta de privacidade que os habitantes da Unidade de Marselha de Le Corbusier reclamaram quando para lá foram viver. Mas a exposição “Film und Foto”, 1929, no mesmo ano da exposição de Barcelona, acabou por dominar com a sua “promenade architectural”.

Hoje recupero e regresso ao texto, porque ao pavilhão de Mies a ligação ao artista Dan Graham e ao fotógrafo Jeff Wall, é inevitável.

Dan Graham, sob a influência do pavilhão de Mies, constrói “Alteration to a Suburban House”, 1978, na sequência de “Homes for America” (1966-67), a sua primeira crítica aos novos subúrbios. Neste trabalho, Graham remove a fachada de uma casa de um subúrbio e substitui-a por uma enorme janela.

No interior, dividiu a frente e as traseiras com um espelho. O espectador na rua, entrava no interior e movia-se através do espelho na sala virtual, mas simultaneamente a paisagem suburbana, a estrada, o passeio, a relva, e as casas em frente estavam também presentes, reflectidas no vidro. O efeito, semelhante ao pavilhão de Mies, colocava o espectador em dois lugares, no exterior, o lugar real, e no interior, o lugar virtual. Por outro lado, o habitante, no interior da sua casa, via por efeito da duplicação no espelho, a rua, o passeio, a relva e as casas da frente. Para Graham, “what the huge window reveals is not a private space but a public representation of a convencional domesticity, an image of socially accepted normalcy” e a estrutura familiar da vida suburbana, tal como a estrutura das casas, era exposta agora a todos, o espaço privado era substituído por um espaço público, e nos subúrbios, os comportamentos passaram a ser ditados, não só pelos anúncios publicitários passados na televisão, mas pelos comportamentos dos vizinhos. Para Graham, a janela da casa é semelhante à janela de uma loja, onde o sonho da classe média americana, se vende como se fosse mais uma mercadoria.

Graham e Wall, respeitam-se mutuamente. Em 1980, Graham escreve um texto de uma fotografia de Wall, “The Destroyed Room”, 1978.

Jeff Wall,The Destroyed Room, 1978
Neste quarto, destruído deliberadamente por desconhecidos, a violência erótica é atenuada, segundo Graham, pela artificialidade da cena que Wall não esconde, e o espectador torna-se voyeur.

Em contrapartida, Wall, escreve no mesmo ano, um texto de sessenta páginas, sobre a obra “Alteration to a Suburban House”, a maqueta de Graham que nunca chegou a ser construída. Controlo e falta de privacidade, são para Wall, a tragédia que angustia o habitante destas casas. E no extenso texto, os efeitos do dia e da noite descritos, estão bem presentes em - Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999.

Jeff Wall, Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999
Wall vai buscar ao cinema o que ele chama de efeito cinematográfico - onde artifício e documento quase não se distinguem, e diz: “muitos são os filmes que nos dão uma sensação de irrealidade, mas que no final nos parecem reais como um documentário”. E é nesta ambivalência, entre um mundo que não é real, porque encenado, recriado a partir da sua imaginação e das suas memórias, como a limpeza em Morning Cleaning, que Wall compõe, através da fotografia digital, um mundo que nos parece mais real que a realidade.

Detalhe
A luz da manhã, ilumina o mármore rosa, e é para lá que primeiro olhamos. De dia, o pavilhão, com as suas paredes de vidro, controla a natureza - o fluxo cronológico do tempo dado pela amplitude da luz que incide na parede. Mas em Morning Cleaning, a opacidade e a rigidez da pedra mármore, que continua no exterior, é que nos faz julgar e misturar os dois espaços, o vidro, ensaboado, em contraste com a sua transparência natural, dá-nos uma imagem difusa da estátua que está no exterior.

Detalhe
Mas a verdadeira estranheza desta fotografia, não está nesta troca, de um vidro que deixa de ser reflector, transparente, mas nas cortinas, que recolhidas, quase passam desapercebidas.

Detalhe
Porque serão de veludo? Para aliviar a intensidade do sol não bastariam ser translúcidas? Se fechadas, a natureza que rodeia o pavilhão é afastada.
No texto, Wall refere que de noite, a natureza retira-se, deixa-se de reflectir no vidro, quando, durante o dia, está sempre omnipresente. Ao iluminar o espaço com luz artificial, o interior da casa transforma-se num gigantesco espelho, e o habitante vê-se reflectido em todas as superfícies, reflexão de reflexão, dependendo da intensidade da luz, como um fantasma que atormenta e angustia o habitante. A transformação do vidro em espelho só é quebrada com o correr das cortinas, e o fechar das cortinas à noite é já em si a expressão da ansiedade de quem habita a casa.

À medida que os anos passam, o controlo e a exposição da nossa vida privada é cada vez maior. Não é de estranhar, nem é por acaso, diz a arquitecta Beatriz Colomina, que o programa televisivo Big Brother foi criado na Holanda, onde as casas por tradição, estão completamente abertas para o exterior.

6 comentários:

maio disse...

Adoro visitar este blog! Faço-o com alguma regularidade, porque fala de quase tudo o que gosto (cinema, fotografia, urbanismo), e ainda aprendo imensas coisas novas.

Muito obrigada, Madalena Lello!

Madalena Lello disse...

ich tem razão, o urbanismo está muitas vezes presente, num blog que é de fotografia. Dei conta disso, quando há semanas atrás decidi mudar o layout do blog e organizar os posts numa lógica diferente das histórias fotográficas, nada de cronologias, nada de movimentos... Curiosamente, cidade/subúrbios tem um "label", só para eles...o que significa que o urbanismo está muito presente na fotografia, tema que interessa os fotógrafos mas tb a todos nós. O trabalho de Arni, em exposição no Museu Berardo, é um trabalho magnífico, Arni denuncia os efeitos desastrosos das cidades planeadas pelos arquitectos. Quando em Novembro de 2005, os subúrbios de Paris se incendiaram, todos vieram para a televisão falar como se tivessem nascido e crescido nesses espaços, porém, não vi ninguém acusar os arquitectos e urbanistas que fizeram aquele horror...
Obrigado pelas suas palavras amáveis

sem-se-ver disse...

e eu gosto deste novo 'look' do seu blog

:-)

Madalena Lello disse...

sem-se-ver, obrigado mas ainda falta o principal que espero ter pronto em breve.

miguel coelho disse...

"Quando em Novembro de 2005, os subúrbios de Paris se incendiaram, todos vieram para a televisão falar como se tivessem nascido e crescido nesses espaços, porém, não vi ninguém acusar os arquitectos e urbanistas que fizeram aquele horror..."

Seria interessante pegar neste tema do lado da fotografia... do modo como o olhar do fotógrafo é capaz de sublinhar, acusar e apontar culpados.
A história da fotografia está cheia destes exemplos...

(este é "O" blog de referência sobre fotografia em português!)

Anabela Quelhas disse...

É interessante a análise que desenvolves a partir do pavilhão de Mies Van Der Rohe. Voltarei mais vezes para te ler.