Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Recentemente, e a pensar na Europa, que tem vindo a ocupar estes últimos posts, fui tentada, por variadíssimas vezes, a escrever mais uma vez sobre a Rússia. Muitos foram os assuntos, tomada de posse do novo Presidente, os novos fundos soberanos russos que atemorizam os europeus, a energia nuclear…, mas a Rússia acabou por ficar para trás e veio, a Abkházia, os Balcãs, a França rural, o Reino Unido, a Irlanda, Portugal,...Na semana passada, o filme, “O Sacrifício”, 1985, do russo Andrei Tarkovsky, vendido juntamente com o jornal Público, foi decisivo, e hoje regresso à Rússia, sob a paisagem Sueca, com o cinema e a fotografia novamente de mãos dadas.
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Medvedev numa visita recente a Berlim disse ao chegar: “se me permitem usar a linguagem de John Le Carré (escritor de espionagem), a Rússia regressou do frio”. Fria, foi como chamaram à guerra de ameaça e incerteza, que se intensificava, ainda o Tratado de Paz não tinha sido assinado. Uma guerra, a terceira, ainda mais terrível porque planetária, dividia o mundo. Na América, vivia-se o dia a dia, como se cada dia fosse o último, na URSS de Estaline, fechada sobre si, onde cresceu Tarkovsky, pouco ou nada sabíamos.
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Itália
No filme, uma voz sinistra na televisão anuncia a guerra atómica. Sonho? alucinação de Alexandre? Pelos pecados do Homem, que transformaram o paraíso num lugar inquietante e assustador, Alexandre sacrifica-se e pede a Deus, ao Deus-Pai, a Paz.
Um rugido de um avião, que mais parece um bombardeiro, faz tremer os copos e desequilibra um jarro de leite, o prenúncio do cataclismo.
Um rugido de um avião, que mais parece um bombardeiro, faz tremer os copos e desequilibra um jarro de leite, o prenúncio do cataclismo.
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Em “O Doutor Jivago”, Boris Pasternak, de quem Tarkovsky tanto admirava, dá-nos a imagem como ambos viam o seu país: “Era, por isso, necessário ensinar as pessoas a não pensar e a não emitir juízos, obrigá-las a ver o que não existia e a defender o oposto do que era óbvio para todos”.
As humilhações, as críticas, os cortes, as alterações das montagens, exigidas pelas autoridades, levam Tarkovsky a deixar o país, a sua casa e a separar-se da mulher e filho.
As humilhações, as críticas, os cortes, as alterações das montagens, exigidas pelas autoridades, levam Tarkovsky a deixar o país, a sua casa e a separar-se da mulher e filho.
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Escreverá no seu diário “o importante é ser livre na sua obra criadora”. No exílio, Tarkovsky filma “O Sacrifício” numa reserva natural na Suécia, mas são as suas memórias da Rússia, que estão presentes.
As polaroids, que tirou ainda na Rússia, acompanham-no sempre, como folhas do seu diário,
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
pois as memórias enchem-no de emoções : “é difícil não ficar sensível num filme de Tarkovsky, à importância de certas sensações elementares que conservam nele a força que tinham para nós na infância: o calor do fogo, a brancura de uma tigela de leite, a transparência de um jarro de vidro onde colocam flores”, escreve Michel Chion no Cahiers du Cinema. Tudo estímulos, que nele produzem emoções, intimamente ligados à sua história, à sua memória, à sua experiência pessoal, escreverá: “o cinema utiliza a nossa vida e não o contrário” .
Andrei Tarkovsky, Polaroid, Rússia
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
No filme, festeja-se o aniversário de Alexandre, Otto, reformado mas que nas horas livres é carteiro, chega carregando na sua bicicleta uma enorme gravura da Europa, é a sua oferta, o seu presente para Alexandre.
Ao olhar para a gravura antiga, para uma Europa doutros tempos,
Ao olhar para a gravura antiga, para uma Europa doutros tempos,
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Alexandre diz aos amigos “Hoje a Europa parece mais com Marte, ou seja nada tem a ver com a verdade. Devia ser maravilhoso, quando o Homem acreditava que o Mundo era assim”.
Mas o poder da fotografia em “O Sacrifico”, transborda as imagens, e é na história, que Otto, conta à família, que encontramos a essência, a essência do filme:
“Uma viúva”, conta então, enquanto passeia na sala grande sob o ranger da madeira do chão “vivia com o seu filho, quando a guerra começou. O rapaz foi recrutado, tinha dezoito anos. Decidiram ir a um fotógrafo tirar uma fotografia para ficar de recordação. A mãe e o filho tiraram a fotografia juntos. Depois o rapaz foi para a frente e poucos dias depois morreu. Imersa no desgosto e na calamidade a viúva esqueceu-se, claro, da fotografia que tinha encomendado.” Otto por vezes é interrompido, Adelaide, mulher de Alexandre, pergunta “Como pôde se esquecer de tal coisa”, mas Otto, responde-lhe “Isso não é importante”, os outros interessados na história pedem-lhe para continuar. “O facto é que esta mulher nunca foi buscar a fotografia. A guerra acabou e ela mudou de cidade, para longe das recordações.”
“Mas ela nem sequer tentou encontrar o fotógrafo, era a última fotografia do seu filho?”, interrompe novamente Adelaide. “Não. Anos mais tarde, acho que em 1960, a mulher foi a um fotógrafo para tirar uma fotografia dela. Queria dá-la a um amigo como recordação. Tirou a fotografia e quando a foi buscar, viu não só o retrato dela mas também a do seu filho morto, ele tinha dezoito anos e ela tinha a idade que tinha quando tirou a última fotografia.” “Isso aconteceu assim? Tal como nos está a contar,” pergunta Victor o médico. “Sim, foi exactamente assim. Falei com a mulher e tenho a fotografia que a mostra em 1960, com o filho com o uniforme de 1940.” “ Meu Deus!, Não está a brincar connosco, pois não?” interrogam e Otto termina “somos simplesmente cegos, não vemos nada”.
Quem contempla uma fotografia sente o impulso irresistível de procurar, e quem verdadeiramente procura, encontra, tal como no sonho e na vida, que se misturam, um espaço impregnado de consciência e outro embrenhado de inconsciente.
Através da fotografia, a visão da viúva é ao mesmo tempo, histórica e trans-histórica: a sua imagem e a do filho aparecem-lhe tal como foram em tempos, como se ela vivesse uma vida independente do tempo, fora dele, num outro, não o histórico. Através desta história, Tarkovsky, realiza a um tempo, a visão da sua unicidade e da sua multiplicidade, num alongamento da vida que lhe permite ver isto: que tudo faz parte de uma só vida - a imortalidade, e os sonhos, que ocupam um lugar importante em todos os seus filmes, representam a maneira mais profunda de conhecer e voltar ao passado.
Mas o poder da fotografia em “O Sacrifico”, transborda as imagens, e é na história, que Otto, conta à família, que encontramos a essência, a essência do filme:
“Uma viúva”, conta então, enquanto passeia na sala grande sob o ranger da madeira do chão “vivia com o seu filho, quando a guerra começou. O rapaz foi recrutado, tinha dezoito anos. Decidiram ir a um fotógrafo tirar uma fotografia para ficar de recordação. A mãe e o filho tiraram a fotografia juntos. Depois o rapaz foi para a frente e poucos dias depois morreu. Imersa no desgosto e na calamidade a viúva esqueceu-se, claro, da fotografia que tinha encomendado.” Otto por vezes é interrompido, Adelaide, mulher de Alexandre, pergunta “Como pôde se esquecer de tal coisa”, mas Otto, responde-lhe “Isso não é importante”, os outros interessados na história pedem-lhe para continuar. “O facto é que esta mulher nunca foi buscar a fotografia. A guerra acabou e ela mudou de cidade, para longe das recordações.”
“Mas ela nem sequer tentou encontrar o fotógrafo, era a última fotografia do seu filho?”, interrompe novamente Adelaide. “Não. Anos mais tarde, acho que em 1960, a mulher foi a um fotógrafo para tirar uma fotografia dela. Queria dá-la a um amigo como recordação. Tirou a fotografia e quando a foi buscar, viu não só o retrato dela mas também a do seu filho morto, ele tinha dezoito anos e ela tinha a idade que tinha quando tirou a última fotografia.” “Isso aconteceu assim? Tal como nos está a contar,” pergunta Victor o médico. “Sim, foi exactamente assim. Falei com a mulher e tenho a fotografia que a mostra em 1960, com o filho com o uniforme de 1940.” “ Meu Deus!, Não está a brincar connosco, pois não?” interrogam e Otto termina “somos simplesmente cegos, não vemos nada”.
Quem contempla uma fotografia sente o impulso irresistível de procurar, e quem verdadeiramente procura, encontra, tal como no sonho e na vida, que se misturam, um espaço impregnado de consciência e outro embrenhado de inconsciente.
Através da fotografia, a visão da viúva é ao mesmo tempo, histórica e trans-histórica: a sua imagem e a do filho aparecem-lhe tal como foram em tempos, como se ela vivesse uma vida independente do tempo, fora dele, num outro, não o histórico. Através desta história, Tarkovsky, realiza a um tempo, a visão da sua unicidade e da sua multiplicidade, num alongamento da vida que lhe permite ver isto: que tudo faz parte de uma só vida - a imortalidade, e os sonhos, que ocupam um lugar importante em todos os seus filmes, representam a maneira mais profunda de conhecer e voltar ao passado.
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
No quarto a criança sonha, o filme passa da cor para o preto e branco, no presente, através dos sonhos regressa-se ao passado, serão os sonhos a cores ou a preto e branco?
E se no início, a árvore estéril, plantada por pai e filho parece-nos morta, regada todos os dias,
E se no início, a árvore estéril, plantada por pai e filho parece-nos morta, regada todos os dias,
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
como o monge, na história que o pai conta ao filho, acaba por florir - a imortalidade, a beleza imensa deste filme.
Andrei Tarkovsky, do filme "O Sacrifício", 1985
“No princípio era o Mundo – O que é isso papa?”
3 comentários:
Os seus escritos me impressionam. Você consegue expor as especificidades do cinema puro, o seu significado e sentimentos e não apenas acontecimentos, com a generosidade de quem sabe realmente o valor de cada imagem.
ainda não vi o filme, mas o texto deu bastante vontade de ver!
parabéns.
interessantes as abordagens e leituras e até a resolução poética do texto...
ola!
assisti recentemente "o sacrificio".estva buscando inormçoes sobre ele e cai no teu blog.
esse filme foi muito intenso pra mim, talvez um dos melhores que ja vi! Tarkovsky lhe dá um peso e um frescor unico com suas minucias. Para mim ficou bem claro a ideia da espiritualidade tratada no filme. O quanto somos regidos pelo desconhecido tal como a forte imagem da "feiticeira". E o quanto nos distanciamos cada vezs mais da compreensao do sagrado, do ritual...
obrigada pelas informaçoes!
ieda terra
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