Há dias tive a oportunidade de espreitar pelos dois orifícios de uma “peepshow”, e ver em três dimensões um interior burguês de uma casa holandesa.
Samuel van Hoogstraten, "peepshow", c. 1655-60. The National Gallery.
Estas caixas de perspectiva suscitaram uma grande curiosidade popular e eram muito vulgares no século XVII, hoje só existem seis no mundo.
A geometria euclidiana com a sua linha de fuga é anterior à criação do espaço em perspectiva da Renascença. A inovação de Brunelleschi, em 1420, segundo Hubert Damisch em “L’origine de la perspective”, está na interpretação arquitectónica da geometria de Euclides.
A geometria euclidiana com a sua linha de fuga é anterior à criação do espaço em perspectiva da Renascença. A inovação de Brunelleschi, em 1420, segundo Hubert Damisch em “L’origine de la perspective”, está na interpretação arquitectónica da geometria de Euclides.
Filippo Brunelleschi, interior da igreja San Lorenzo, 1419-60, Florença
A perspectiva surge associada não à pintura mas à construção, mais concretamente à construção das cidades ideais sonhadas pelo homem do quatroccento.
Francesco Giorgio Martini, The Ideal City, c. 1480
Pouco depois é Alberti a interpretá-la na pintura, e neste novo espaço geométrico o mundo é representado no interior de um cubo imaginário. O pintor e fotógrafo Jan Dibbets, interessa-se, desde a década de 1960, em questionar as percepções visuais da perspectiva geométrica e, através da fotografia, testemunha as transformações.
Jan Dibbets, Perspective Correction - My Studio I, 1969
Quadrado ou trapézio?
Tudo depende do ponto de vista. Dibbets desenhou um trapézio, é esta a forma geométrica desenhada na parede, mas o ponto de vista escolhido por Dibbets, transforma o trapézio em quadrado, transformação que nos causa desconforto, pois o quadrado parece sair da parede. O nosso cérebro não gosta de discontinuidades e neste caso não sabe como agir para processar a ilusão criada pela máquina fotográfica. Não consegue extrapolar ou estabelecer relações, mesmo que falsas, para repor o equilibrio a que estamos habituados, i.e, a perspectiva geométrica.
Ao lado do “peepshow” está este quadro de Pieter Saenredam,
Tudo depende do ponto de vista. Dibbets desenhou um trapézio, é esta a forma geométrica desenhada na parede, mas o ponto de vista escolhido por Dibbets, transforma o trapézio em quadrado, transformação que nos causa desconforto, pois o quadrado parece sair da parede. O nosso cérebro não gosta de discontinuidades e neste caso não sabe como agir para processar a ilusão criada pela máquina fotográfica. Não consegue extrapolar ou estabelecer relações, mesmo que falsas, para repor o equilibrio a que estamos habituados, i.e, a perspectiva geométrica.
Ao lado do “peepshow” está este quadro de Pieter Saenredam,
Pieter Saenredam, The interior of the Grote Kerk at Haarlem, 1636-7. The National Gallery.
pintor que Dibbets homenageou em 2003, ao utilizar nas suas fotografias a arquitectura como iconografia, como Saenredam havia feito em relação ao interior das igrejas, transgredindo a visão real e possibilitando um novo olhar sobre os espaços e o interior das mesmas igrejas, a partir de vistas insólitas obtidas e trabalhadas de acordo com múltiplos e diferentes pontos de vista.
Jan Dibbets, Saenredam-Zadkine II, 2003
Durante os séculos XVII e XVIII a câmara escura foi largamente utilizada pelos pintores, e se a personagem Griet, do filme, “A rapariga com o brinco de Pérola” se espanta quando olha para o interior da câmara escura e vê a imagem que Vermeer irá pintar, é porque, como todos nós sabemos hoje, não vemos segundo a geometria dada por estes instrumentos, e assim Griet também se espantou com a distorção do que viu.
Olhando para este quadro de Vermeer,
Johannes Vermeer (1632-1675).
percebe-se claramente o uso da câmara escura pela discrepância de escala das duas figuras. O nosso cérebro não reduz na mesma escala euclidiana os objectos ou pessoas que estão mais afastados. No sentido matemático a perspectiva está correcta, a imagem de um objecto reduz-se em metade com a duplicação da distância, é a optica geométrica e aplica-se tanto ao nosso olho como à máquina fotográfica. Mas a realidade é percepcionada de forma diferente. Nós não vemos o mundo de acordo com as dimensões ou formas das imagens retinianas e, neste ponto sai a geometria e entra a percepção. O nosso cérebro compensa as mudanças na imagem retiniana com mudanças na distância visual. Tomar a perspectiva geométrica por realidade é idealizar – falsificar ingenuamente, porque uma mimésis, também ela fictícia.
Contudo qualquer história da fotografia trás sempre reproduzida uma câmara escura, subentendendo-se uma filiação directa entre esta e a imagem de uma máquina fotográfica.
Thomas Bernhard não se cança de repetir “ Tudo é artificial, tudo é artifício. A natureza já não existe. Nós continuamos a partir ainda da observação da natureza, quando afinal há já muito tempo que só devíamos partir da artificialidade (...) tudo é tão caótico. Tão falso. Tão infeliz”, pois para Bernhard “Fotografar é um vício abjecto, que a pouco e pouco se vai apoderando de toda a humanidade, porque esta não está só apaixonada, mas também doida pela distorção e pela perversidade e, de tanto fotografar, toma efectivamente, com o tempo, o mundo distrocido e perverso pelo único que é verdadeiro. Aqueles que fotografam cometem um dos crimes mais abjectos que é possível cometer, tornando a natureza, nas suas fotografias, em algo perversamente grotesco”.
A fotografia nasceu com um pecado original – o de ser feita por uma máquina. Baudelaire que percebia os cruzamentos das artes e a correspondência dos sentidos como ninguém, não apreciou a fotografia, viu nela, uma tecnologia, uma má contaminação para a arte. Para ele todos os progressos industriais conduziam ao empobrecimento do génio artístico, e a fotografia não ficava de fora. Quanto muito a fotografia poderia ser a “serva das ciências e das artes”.
A história da arte coincide com uma história da percepção, e a evolução das formas artísticas ao longo do tempo constituem as mutações históricas da visão. Mas quando é que se dá a verdadeira ruptura com o modelo da Renascença?
Será que a fotografia é perversa? (continua).
Contudo qualquer história da fotografia trás sempre reproduzida uma câmara escura, subentendendo-se uma filiação directa entre esta e a imagem de uma máquina fotográfica.
Thomas Bernhard não se cança de repetir “ Tudo é artificial, tudo é artifício. A natureza já não existe. Nós continuamos a partir ainda da observação da natureza, quando afinal há já muito tempo que só devíamos partir da artificialidade (...) tudo é tão caótico. Tão falso. Tão infeliz”, pois para Bernhard “Fotografar é um vício abjecto, que a pouco e pouco se vai apoderando de toda a humanidade, porque esta não está só apaixonada, mas também doida pela distorção e pela perversidade e, de tanto fotografar, toma efectivamente, com o tempo, o mundo distrocido e perverso pelo único que é verdadeiro. Aqueles que fotografam cometem um dos crimes mais abjectos que é possível cometer, tornando a natureza, nas suas fotografias, em algo perversamente grotesco”.
A fotografia nasceu com um pecado original – o de ser feita por uma máquina. Baudelaire que percebia os cruzamentos das artes e a correspondência dos sentidos como ninguém, não apreciou a fotografia, viu nela, uma tecnologia, uma má contaminação para a arte. Para ele todos os progressos industriais conduziam ao empobrecimento do génio artístico, e a fotografia não ficava de fora. Quanto muito a fotografia poderia ser a “serva das ciências e das artes”.
A história da arte coincide com uma história da percepção, e a evolução das formas artísticas ao longo do tempo constituem as mutações históricas da visão. Mas quando é que se dá a verdadeira ruptura com o modelo da Renascença?
Será que a fotografia é perversa? (continua).
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