quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Fotografia científica (II)

Terminámos o post anterior com as fotografias tiradas pela NASA a Neil Armstrong, o astronauta que ao pôr pela primeira vez o pé na Lua, a 20 de Julho de 1969, declarou “isto é um salto de gigante para a humanidade”, e para a NASA o início de uma nova era.
Nasa, Missão STS 41 - C James D. Hoften na alcova de armazenamento do Shuttle Challenger durante a colocação do stélite solar Max, Abril, 1984

Mas foi também a olhar para os céus, para as estrelas e constelações, que David Stephenson apontou a sua câmara fotográfica, e inspirado na Fuga de Bach e na beleza sublime da abóbada celeste vista num deserto da Austrália, local privilegiado para a observação, tirou estas magníficas fotografias.
David Stephenson, Estrelas 1996/nº702, 1996
David Stephenson, Estrelas 1996/nº706, 1996

É a olhar para o céu que o homem se situa de novo no centro do Universo, pois é a olhar para o céu que o homem se confronta com o infinito, o melhor campo para a imaginação deambular. E a imaginação de Stephenson deambulou ao incluir o tempo_ o movimento_ o movimento aparente das estrelas - resultado da rotação da terra - e o movimento da rotação da câmara fotográfica que predeterminou.
Para fotografar a constelação Orion, a primeira fotografia, Stephenson rodou a câmara fotográfica em 90º por quatro vezes, deixando em cada exposição, o tempo de cinco minutos. Na segunda, fotografou a Cruz do Sul, onde manteve a rotação da câmara mas onde o tempo foi três vezes superior.
Para obter configurações mais complexas, como estas espirais,
David Stephenson, Estrelas 1996/nº1004, 1996

Stephenson programou mais rotações para tempos de exposição mais curtos, vinte e quatro rotações de 15º para tempos de exposição de três minutos. A estrela brilhante que traça esta espiral é provavelmente o planeta Vénus, pensa Stephenson.
Mais recentemente, 2005, começou uma nova série de cartas celestes, utilizando tempos de exposição que durarão uma noite inteira. Nestas duas fotografias, os títulos são explícitos sobre a posição e o dia.
David Stephenson, Estrelas W x NW, 1-2/9/2005, Austrália Central, 2005
David Stephenson, Estrelas N x NE, 3-4/9/2005, Austrália Central, 2005

Ao contemplar estes céus, espaço e tempo confundem-se, é a reinvenção do sublime a partir da câmara fotográfica, pois há fotógrafos que conseguem ultrapassar os limites da fotografia.

Mas foi precisamente sobre o movimento, o movimento invisível da locomoção, que Françoise Paviot inicia a sua visita guiada em “Yes Indeed”, a exposição sobre fotografia científica que montou na sua galeria e que tem inspirado estes posts.
Como refere Paviot no vídeo, falar de movimento em fotografia, é falar de Étienne-Jules Marey (1830-1904) e Eadweard Muybridge (1830-1904), reparem na coincidência das datas de nascimento e morte. Ambos criaram aparelhos apropriados para o registo do movimento e deram a conhecer ao mundo movimentos imperceptíveis em observação directa. A fotografia era então utilizada como solução de vários problemas científicos relacionados com o movimento.
Muybridge, instigado por Leland Stanford um rico criador de cavalos da Califórnia, consegue fotografar a corrida de um cavalo com intervalos regulares e precisos.
Eadweard Muybridge, Galloping Horse, 1878

Através de uma técnica sofisticada e utilizando um novo tipo de câmara, Muybridge conseguia registar as fases de um movimento, que para o olho humano seriam difíceis de detectar e mais tarde alarga estas suas experiências à locomoção humana.
Eadweard Muybridge, Plate 365, do livro "Animal Locomotion", 1885

Em 1887, compilou nos seus onze volumes de “Animal Locomotion” mais de 20 000 fotografias.
Eadweard Muybridge, Ben Bailey subindo uma escada, 1885

Marey era fisiologista, e vivia em França. Para ele as funções vitais, objecto de investigação fisiológica, eram fenómenos puramente mecânicos. Através dos aparelhos que criou, Marey conseguia traduzir em termos gráficos os movimentos do corpo e dos seus órgãos internos, como o pulsar do coração.
A imagem gráfica não nos dá a realidade, não é mimética, é antes uma transformação métrica de determinados fenómenos inacessíveis aos nossos sentidos. Os registos gráficos desenvolveram-se no início do século XIX e eram uma novidade, por exemplo uma frase podia ser representada por um conjunto de curvas, (ondas radiofónicas) aplicadas a um aparelho vibrador que restituíam uma frase sonora e estes mecanismos de registo produziam imagens totalmente novas.
Estudo fisiológico da voz humana, M. Piltan, 1887

Marey enquanto fisiologista e homem das ciências foi dos primeiros a escrever sobre o assunto. Em 1878, publicava “La méthode graphique dans les sciences expérimentales”. Neste livro, Marey ilustrava através de gráficos, fenómenos físicos complexos, difíceis de explicar ou mostrar. De forma mecânica, através dos aparelhos que criou, Marey conseguia captar, medir e transmitir traços que constituíam os registos gráficos.
Étienne Jules Marey, excitações sucessivas no músculo de uma rã, do livro "La Méthode Graphique"

Por fenómeno entendia Marey tudo que fosse caracterizado por variações de grandeza física, como dilatação, temperatura, pressão, velocidade do vento, corridas, bolsas de valores, estatísticas de natalidade…, cuja variação lenta ou rápida, brusca ou contínua, tinha como variável fundamental o tempo. Para ele todos os fenómenos, sejam eles económicos, metereológicos, fisiológicos, estatísticos, biológicos, físicos…eram determinados pelo tempo.
Étienne Jules Marey, Diferentes traços de um mesmo fenómeno fisiológico, pulsação cardíaca, 1894

Por ser eficaz e útil ao permitir a visibilidade de fenómenos invisíveis, o método gráfico tornou-se numa nova linguagem universal e foi amplamente divulgado mesmo fora dos meios científicos. No ano em que Marey publicou o seu livro, 1878, Muybridge publicava as suas primeiras sequências da corrida de um cavalo. Ao vê-las, Marey não se contenta com o seu método gráfico, e utiliza a câmara fotográfica para também ele registar de forma mecânica e precisa o movimento de um homem a correr durante um determinado tempo.
Étienne Jules Marey, Fotografia representando as diversas fases sucessivas de um homem a correr, do livro "La photographie du mouvement"

Contudo para precisar melhor o movimento, o modelo vestia-se de preto e nos membros e articulações pertinentes à análise do movimento da locomoção, pintou linhas e pontos brancos.
Étienne Jules Marey, Estudo da locomoção c. 1884

Étienne Jules Marey, Análise cronofotográfica da marcha, 1883

Nestas imagens o sujeito em movimento aparece em posições múltiplas em diferentes pontos no espaço. Marey transformava também a fotografia num método gráfico, produzindo diagramas de um novo género.
Étienne Jules Marey, Marcha de um homem, trajectória de diferentes articulações, do livro "Développement de la Méthode Graphique par l'emploi de la photographie"

Em 1887 utiliza o termo cronofotografia, que levaria mais tarde à invenção do cinema, para designar as fotografias registadas de forma sucessiva na mesma placa fotográfica.
Étienne Jules Marey, cronofotografia, 1890

Com o desenvolvimento de placas mais sensíveis à luz, em 1888-89 Marey deixa a placa única e fotografa em vários momentos (50 fotografias por segundo), o movimento. A imagem global lê-se como uma sequência de imagens elementares que por sua vez são posições reais no espaço e no tempo.
Se no virar do século, ambos os trabalhos influenciaram os futuristas italianos, como Anton Giulio Bragaglia,
Anton Giulio Bragaglia, O estalo, 1912

também Marcel Duchamp não ficou imune a estas influências ao pintar o seu “Nu descendo uma escada”, 1912,
Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada, 1912

o quadro que provocou um escândalo no Armory Show, 1913, de Nova Iorque. Alguns anos mais tarde Harold Edgerton, registava o grafismo deixado pelo bastão de uma majorette,
Harold E. Edgerton, A drum majorette at the Belmont, Massachusetts, High School Twirling a baton, 1948

enquanto que Andreas Feininger, registava em desenho as curvas das pás em movimento de um helicópetro.
Andreas Feininger, Desenho feito por helicóptero com luzes nas pás do rotor, Navy Field em Anacostia, Maryland, 1949
Na actualidade, o movimento implícito de ambos os trabalhos continua a despertar a atenção dos artistas contemporâneos. No ano passado o centro Georges Pompidou adquiriu para a sua colecção fotográfica, os trabalhos do artista Olafur Eliasson, que à semelhança de Marey registou as oscilações da locomoção humana, como um registo gráfico.
Centro Pompidou, exposição dos trabalhos adquiridos para a colecção, Dezembro 2007
Olafur Eliasson, Centro Pompidou, exposição Dezembro 2007
Olafur Eliasson, Centro Pompidou exposição Dezembro 2007
Olafur Eliasson, Centro Pompidou exposição Dezembro 2007

Sol LeWitt, o artista conceptual que morreu no ano passado, deixou-se fascinar pelo fenómeno do movimento ao ver o livro “Animal Locomotion” de Muybridge. Se o trabalho de Muybridge facilitou a invenção do cinema, para LeWitt vai ser o modus operandi dos seus trabalhos seriais. Para ele as séries de Muybridge eram também interessantes por nenhuma delas ter um ponto culminante, faziam todas parte de um todo que isoladamente perdiam o seu significado principal, ou seja, o movimento implícito. Como LeWitt referiu “a corrida de um homem no livro de Muybridge foi a inspiração para todas as transformações de um cubo dentro de um cubo, um quadrado dentro de um quadrado…”. “Variações de cubos incompletos”, a série de cubos incompletos que o espectador terá de completar, é hoje um trabalho de referência. Mas "Parede de Tijolos" será talvez o trabalho fotográfico que melhor representa esta dinâmica serial. Composto por 30 fotografias, tiradas de uma das janelas da sua casa o ponto de vista é fixo, mas “sempre que olho para a parede ela muda e mantém uma beleza constante, em todos os momentos”, diz LeWitt. E em "Muybridge I, Representações esquemáticas de uma vista interior" uma homenagem ao inspirador:
Sol Lewitt, Muybridge I, 1964

Julguei no início que a fotografia científica ocuparia dois posts, afinal...

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