segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Fotografia Científica (I)

Quando a 3 de Janeiro de 1839 o físico François Arago anunciava na Academia das Ciências em Paris, a descoberta do daguerriótipo, os procedimentos de tal invenção ficavam ainda no segredo dos deuses. Arago, que para além de físico era deputado, conseguiu, relevando os benefícios que tal descoberta teria na ciência, que a assembleia aprovasse a divulgação do processo. O governo francês pagaria a Daguerre e ao filho de Niépce, os inventores, uma renda vitalícia em troca do segredo. A 19 de Agosto, perante a Academia das Ciências e a Academia das Belas-Artes de Paris, Arago revelava ao imenso público, que aí acorrera, a divulgação do invento. No seu discurso, pronunciou os méritos que tal descoberta teria no domínio da ciência, e não se enganou, pois logo no ano seguinte, em 1840, o médico Alfred Donné, um entusiasta do daguerriótipo, aplicava-o ao estudo da microscopia. Era o início da fotografia científica.

Auguste Bertsch, Volvox globator vivants, c. 1853-57

Na semana passada, recebi na minha caixa de e-mail a newsletter da photographie.com. Um dos temas em destaque “Yes Indeed”, a exposição de fotografia científica, agora em mostra na galeria Paviot em Paris. Graças a Photographie.com podemos visitar aqui “Yes Indeed”, onde Françoise Paviot, a galerista, nos serve de guia. “O espaço da galeria é pequeno e as fotografias imensas”, comenta Paviot, “optamos então por seguir o modelo expositivo em voga no século XIX, onde as paredes eram preenchidas de cima até baixo com as obras”, e pelo que podemos ver foi a solução certa, fantástica mesmo.

Se à microscopia e à astronomia se associava a exploração de mundos invisíveis e infinitos, à fotografia, um outro sistema óptico, associava-se o registo objectivo das realidades invisíveis e infinitas desses mundos. O mundo invisível dos microrganismos e o mundo infinito da astronomia, restritos ao homem das ciências, passavam agora a ser visíveis pelo homem comum pois através da imagem fotográfica, via-se aquilo que o olho não via. A fotografia, uma extensão da visão ocular, uma “prótese da visão”, como lhe chamou mais tarde Freud, ultrapassava os limites da fisiologia humana, e impôs-se desde cedo como corolário do percurso das tecnologias do visível.

No mundo invisível da microscopia, não foram só os microrganismos que foram fotografados. No hospital da Salpêtrière, o neurologista Jules-Bernard Luys publicava em 1873 a sua “Iconographie photographique dês centres nerveux”.
Jules Luys, "L'Iconographie photographique des centres nerveux", estampa XVIII, 1873

Mais tarde, Wilson Bentley, (1865-1931), passou meio século a fotografar a estrutura cristalina dos flocos de neve, fez milhares de microfotografias, para ser mais preciso, 5.381, e nunca encontrou dois cristais idênticos.
Wilson A. Bentley, Floco de neve, 31 Março 1911

Só em 1986, o mistério deixou de o ser, e foram identificados dois cristais de neve idênticos. Na mesma época, no início do século XX, Karl Blossfeldt fotografava grandes planos de vegetais.
Karl Blossfeldt, Cucurbita, 1928

Tiradas de frente, verticalmente, sob fundo neutro, e uma luz indirecta, as plantas de Blossfeldt serviram de modelos ornamentais utilizadas pelas academias de arte. As entradas do metro de Paris, são um exemplo. Em meados do século, Harold E. Edgerton, um engenheiro do Massachusetts Institute of Technology (MIT), entretinha-se a investigar as novas técnicas de fotografia de “flash” electrónico de alta velocidade. Edgerton espantou o mundo com as suas fotografias que revelavam o que acontecia quando uma gota de leite pingava na superfície em repouso de um pires de leite. Na década de 50, não resistindo à cor, saturou de vermelho o branco do leite, e com a sua coroa de gotículas de leite formada no famoso “splash”, Edgerton estetizava a ciência.
Harold Edgerton, Milkdrop Coronet, 1957

Hoje, no século XXI, Michal Rovner, situa-se na fronteira entre o real e a ficção, entre a imagem fixa e a imagem em movimento, “ mas parto sempre da realidade” diz a artista israelita. Em 2005, o Jeu de paume em Paris apresentava a instalação “Data Zone”. Para ela os seres humanos tendem a criar ordem a partir da desordem e tais estruturas assemelham-se às culturas bacterianas, as “Data Zone”. Na sua instalação,
Michal Rovner, "Data Zone", vista de um detalhe da instalação, trabalho de 2003
Michal Rovner, "Data Zone", detalhe de instalação, trabalho 2003

filma o movimento real de pessoas, que de mãos dadas, criam e simultaneamente destroem círculos que mais parecem universos de investigação laboratorial. Ciência? Arte? Cruzamento da ciência com a arte?

Deixemos os mundos invisíveis da microscopia e regressemos ao mundo infinito da astronomia, mundo que também foi registado intensamente pela objectiva da máquina fotográfica. “Mesmo a face da lua deixa o seu retrato na substância misteriosa de Daguerre” escrevia Alexander von Humboldt em 1839. Observar os eclipses do sol e da lua, eram fenómenos que suscitavam um enorme interesse. Olympe Aguado fotografou um eclipse da lua.
Olympe Aguado, Eclipse da lua, 1856

Em 18 de Julho de 1860, o eclipse total do sol foi fotografado em diversos locais. Warren De la Rue, fotografou-o em Espanha,
Warren De la Rue, Fases de um eclipse total, 18 de Julho, 1860

Aimé Girard, no norte de África fotografava o mesmo eclipse.
Aimé Girard, Observações de um eclipse do sol, 18 de Julho d 1860

Já no século XX, em 1912, Joshua Benoliel, fotografava em Lisboa os populares vendo o eclipse do sol,
Joshua Benoliel, Populares vendo o eclipse do sol numa rua de Lisboa, 1912

mas Benoliel quis também fotografar o lado científico, e deslocou-se ao observatório astronómico da Ajuda para tirar esta fotografia.
Joshua Benoliel, Vendo o eclipse no Observatório Astronómico da Ajuda, Lisboa 1912

Mas a astronomia não são só eclipses, Jules Janssen , em 1874, fotografava a passagem artificial de Vénus sobre o sol.
Jules Janssen, Passagem artificial de Vénus sobre o sol, 1874

A lua, que ao contrário do sol se deixava fotografar, interessou também os astrónomos. Lewis Rutherfurd, em Nova Iorque tirava esta fotografia da lua, estávamos em 1865.
Lewis Rutherfurd, A lua, Nova Iorque, 1865

Em 1953, quase cem anos depois, Girassol e os seus amigos, Tintim e capitão Haddock, embarcavam num foguetão “Rumo à Lua”, antecipando-se 13 anos a Neil Armstrong o primeiro a assentar os pés em solo lunar. Uma antecipação científica tão rigorosa só podia ser apoiada em documentação. Hergé, o famoso criador, disse o seguinte: “o que eu fiz em “Rumo à Lua” foi romanciar livros que já existiam como “A Astronáutica”, li muito antes de me lançar nesta história”. Mas hoje também se sabe que Hergé recorria à fotografia. O palácio Moulinsart, residência do capitão Haddock, foi desenhado a partir de fotografias.
Robert Doisneau, o fotógrafo humanista, fez também trabalhos de encomenda. Em 1942, em plena guerra, o editor Maximilien Vox preparava o livro “Les Nouveaux Destins de l’intelligence française”, encomendado pela autoridade de Vichy. O objectivo era celebrar o brilho e esplendor da ciência francesa. Doisneau, o fotógrafo escolhido. Em Ivry, no laboratório atómico onde trabalhavam os Joliot-Curie, Doisneau tirou estas fotografias.
Robert Doisneau, Laboratório atómico de Ivry, 1942
Robert Doisneau, Laboratória atómico de Ivry, 1942

Em 1942, os físicos evitavam a utilização do arco eléctrico porque isso correspondia a uma perca de energia, e a época era de contenção. Só depois, na câmara escura, Doisneau acrescenta um arco eléctrico imaginário entre as duas esferas.
Robert Doisneau, Laboratório atómico de Ivry, 1942, fotografia retocada.

Esta é uma imagem da banda desenhada "Rumo à Lua",
Rumo à Lua, Hergé
Hergé

Fantasias de Hergé, ou um imaginário criado a partir das fotografias, também elas um pouco imaginárias? Cruzamento do mundo da fantasia com o mundo da ciência?
Em 1969, Apollo 11 aterrava na Lua e a NASA fotografava Neil Armstrong o primeiro astronauta a pisar solo lunar.
Fotografias da lua tiradas pela NASA, 1969

A NASA chegava onde só os astronautas chegavam, e nós na terra, especados em frente aos televisores, víamos o que nos era invisível.

Mas a fotografia científica não se reduz ao mundo invisível dos organismos, nem ao mundo infinito da astronomia, no próximo post, porque este já vai longo, revelaremos outros espantos da fotografia científica

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