segunda-feira, janeiro 08, 2007

Cinema e Fotografia. Aurora de Murnau

O cinema nasce da fotografia, mas cedo se livrou do seu progenitor ao impor-se como arte, passava a ser a “sétima arte”.
Jean-Luc Godard na sua Histoire(s) du Cinéma (1991-1997), por três vezes se questiona se o cinema é “herança da fotografia?”, e por três vezes a sua resposta é sim. Godard tem razão ao assinalar a separação que ainda hoje persiste entre cinema e fotografia.
Mas será que faz sentido, essa separação, como se de dois territórios distintos se tratasse?

Durante o mês de Janeiro a Cinemateca vai exibir uma retrospectiva de autor, Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), e Aurora, (Sunrise), de 1927, uma das obras primas da História do cinema, passará nos dias 26 e 29.

Aurora, é um dos filmes mais fotográficos que já vi. Ao longo da História do cinema, algumas das suas obras primas foram provocadas por olhares fotográficos. Blow-Up (1966) de Antonioni, La Dolce Vita (1959) de Fellini e mais recentemente os filmes de Wim Wenders. Stanley Kubrick uma vez afirmou: para fazer um filme, não é preciso saber quase nada, mas é preciso saber fotografia.


Blow-Up, M. Antonioni, 1966





Studio August Sander, c.1930

La Dolce Vita, F.Felini, 1959



Pouco tempo depois da estreia de Aurora, a Warner lançava o primeiro filme falado The Jazz Singer. Primeiro filme de Murnau em Hollywood, Aurora não foi o êxito de bilheteira que a crítica esperava. Para Murnau é a morte prematura do cinema mudo. Um pouco antes de morrer, Murnau escreve o seguinte: “O filme sonoro significa um grande progresso no cinema. Infelizmente vem cedo demais: começavamos agora a encontrar uma via para o cinema mudo, valorizavamos todas as possibilidades da camara...”.
A fotografia, na sua Alemanha, passava também por um período de extensa experimentação. Nos anos 20, a fotografia via-se subitamente prestigiada pelas avant-gardes e os meios intelectuais alemães. Uma nova mobilidade do olhar com perspectivas abruptas descendentes/ascendentes, as luzes, os reflexos, as sombras... provocavam um efeito de desfamiliarização do objecto na imagem. A máquina fotográfica era uma verdadeira “prótese visual”, capaz de alargar a visão do homem, e no filme, essas novas percepções que a fotografia revelara, são uma constante.






Umbo, 1928
W. Peterhans, 1929

O tema de Aurora, um drama conjugal, adaptado da novela de um seu compatriota, Hermann Sudermann, é transformado numa obra prima. Se o drama conjugal é o tema, o antagonismo entre campo e cidade é o centro do filme. Da paisagem bucólica, romântica do campo, somos transportados, de eléctrico, para a vida alucinante da cidade. E é na cidade que o filme é fotográfico.
A visão de Murnau assenta no meio artístico e intelectual da capital, Berlim, paradigma da cidade moderna. As diversificadas e contraditórias formas de vida que aí se cruzavam, a sua vida agitada, fascinaram e serviram de tema a Murnau e todos os outros artistas. A “vamp” do filme vem da cidade, local de perdição...





Adolf Uzarski, Cabaret Café, 1928
Nikolaus Braun, Cena de rua em Berlim, 1921

Murnau, capta na cidade, fragmentos da vida urbana, o trânsito,

Gyorgy Kepes, 1930

Anton Stankowski, 1929

Gyorgy Kepes, 1930

personagens anónimas que andam nas ruas,



Martin Munkacsi, n.d.
Friedrich Seidenstucker, 1925

os reflexos dos espelhos no barbeiro,














Hans Finsler, n.d.

as sombras (transformando através delas o camponês numa personagem aterradora), ...tudo motivos da fotografia moderna.






Edmund Kesting, 1930
Heinrich Heidersberger, n.d.

Mas é no salão de chá, local onde o casal se reconcilia, que Murnau mais utiliza o que a fotografia revelara. Os reflexos dos vidros do salão de chá, a sua transparência e sobreposição fazem-nos perder a referência, estamos no interior ou exterior? Essa ambiguidade e confusão de planos gerando uma espécie de abstração e movimento, são verdadeiramente os motivos previligiados da fotografia moderna.






Umbo, Store in Berlim,1929
Willy Zielke, n.d.


Willy Zielke, fotógrafo polaco que emigra para a Alemanha, referia na época, que o que lhe interessava fotografar eram os jogos de transparência, de reflexo, de difracção...as composições abstractas, criadas pela memória imediata de um acontecimento luminoso. Em 1932, Zielke também envereda pelo cinema e é o produtor em 1936 do filme Olympiad de Leni Riefenstahl.

Mas se há filmes fotográficos, há livros de fotografias que são cinematográficos. “Lisboa, Cidade Triste e Alegre” de Victor Palla e Costa Martins é um exemplo. Aguardem então o próximo post

Sem comentários: