Há uma semana escrevi sobre “Yesterday’s Sandwich”editado recentemente pela Phaidon de Boris Mikhailov. Volto novamente à fotografia de Mikhailov e ao seu trabalho fotográfico feito em Kharkov, cidade onde viveu. Para entender e apreciar devidamente as fotografias que fez de Kharkov, ajuda sobrepor e comparar com a Kharkov vista pela máquina de propaganda oficial, onde os êxitos da reconstrução da cidade e a sua modernidade constituiam o seu objeto. As imagens de Mikhailov são o exemplo do fracasso dessas aspirações da cultura urbana soviética, e as suas fotografias, contrariamente à máquina de propaganda tem uma leitura negativa. Mikhailov retrata a sociedade que o rodeia. As suas fotografias são imagens da vida quotidiana, da gente da rua, mas escondem uma profunda reflexão sobre a condição humana e as situações económicas e políticas da cidade onde viveu. No último post sobre Mikhailov terminei mostrando a única fotografia sobrevivente de um filme inutilizado pela polícia, uma forma encontrada por Mikhailov para politizar uma imagem fotográfica, sem contudo utilizar iconografia política. Depois da série vermelha, Mikhailov fotografa a sua cidade de Kharkov em cinzento.
Na década de 1930 a revista “URSS em construção” fazia edições sobre a cidade de Kharkov. Se Moscovo foi amplamente fotografada, pouco se sabe sobre as outras cidades soviéticas, afirma Margarita Tupitsyn, que investiga os arquivos russos desde 1988.
Em Lisboa, em 1999 no CCB vimos “A Nova Moscovo”, de Aleksandr Rodchenko. Numerosas fotografias desta série publicitavam as novas habitações dos trabalhadores construidas no periodo abrangido pelo plano quinquenal, iniciado em 1928 por Estaline. Moscovo, era mostrada como o epicentro da modernidade. Rodchenko fotografou os edifícios construtivistas mais recentes, edifícios de apartamentos, os clubes de trabalhadores, fábricas com maquinaria sofisticada, cozinhas comunais, parques... enfim a imagem de Moscovo de Rodtchenko era a de uma população urbana, feliz, entusiasta e em boa forma física. A imagem de Kharkov nas várias edições de “URSS em construção” é diferente, porque muito mais narrativa. No seu livro “The soviet Photograph, 1924-1937” Tupitsyn revela as diferenças que existiam no seio do partido comunista. Do seu estudo, Tupitsyn conclui a coexistência de dois tipos distintos de documentário fotográfico relativos ao primeiro plano quinquenal. As reportagens de Rodchenko, Elizar Langman e Boris Ignatovich, diferenciam-se das de Arkadii Shaikhet e Max Al’pert. Os primeiros eram acusados pela crítica de darem uma visão fragmentada da nova reconstrução do país. Os grandes planos, os ângulos originais e os pontos de observação inusuais, eram para os críticos artifícios, utilizados pelo Ocidente burguês.
Elizar Langman, Young Commune "Dinamo", 1930
Em relação a esta fotografia, a crítica escrevia que era chocante que a chaleira para além de obstruir a visão da vida comunal dos estudantes, fosse maior que as cabeças dos mesmos. Pelo contrário Shaikhet e Al’pert embora utilizassem por vezes planos inclinados, a perspectiva tradicional era a mais utilizada e defendiam uma narrativa linear, que fácilmente fosse compreendida por quem visse as reportagens. Vários foram os debates e críticas mas o fotojornalismo de Shaikhet e Al’pert foi o modelo mais tarde adoptado pelo partido comunista. Vejamos então como era fotografada a nova Moscovo pelos dois grupos:
Shaikhet, Steamroller, Moscovo, 1931
Rodchenko, Paving Streets, Moscovo, 1929
E a reportagem de “A Day in the life of a Moscow Working-Class Family, publicada em Soviet Photo 1931.
Reportagem de Shaikhet e Max Al'pert, 1931
A narrativa de um dia desta família era fácilmente compreendida. Ao contrário de Rodchenko e Ignatovich que segundo a crítica o objecto era enaltecido em vez do trabalhador.
Rodchenko, da série The Amo, 1929, Moscovo
Por seu lado o grupo de Rodchenko, opunha-se aos fotojornalistas que ilustravam as revistas com fotografias panorâmicas, como as que se vêem na “URSS em contrução” dedicadas a Kharkov.
“A ala de ventilação na Casa da Eduação Política. Trabalho na casa como fotógrafo. Escrevo sobre Viscidez. Mas talvez este seja o meu beco sem saída, o meu acorrentamento da alma. Mas se calhar está tudo associado”. Série Viscidez, 1982
“No caminho da casa, na Rua Pushkin, para a casa de Educação Política.” Série Viscidez, 1982
“Género enfadonho”, Série Viscidez, 1982
“Um auxílio visual. Tudo na mesma. Mas está bem. É assim que a cidade através dos ritmos mais vulgaressurge no campo.” Série Viscidez, 1982
“As nossas estradas, espaço, linhas. A não-comunicatividade potencial dentro do nosso próprio automóvel”. Série Viscidez, 1982
“Não há problema!”, Série Viscidez, 1982
“Perdoem-me”. Série Viscidez, 1982
Legendas
“Uma fotografia tirada para recordação,- “Lurik”- pertence ao mesmo estilo de Viscidez e existe para que outros se lembrem de que eu compreendia e sentia, e de como eu vivia, onde etc, muito embora isso possa não ter significado para mais ninguém”. Série Viscidez, 1982
“As varandas estão a ser reparadas (isto é perto do Bazar Sumsky). Pode pensar-se que a busca da beleza dos ritmos está a tornar-se a coisa principal. Mas consolo-me com a ideia de que a construção e as renovações são o que realmente caracteriza o tempo”. Série Viscidez, 1982
“Benjamin. Traumkitsch (sonho kitsch). (Um sonho transforma-se em Kitsch). “O sonho já não revela o horizonte azul. Tudo é agora cinzento. Os sonhos transformaram-se na estrada que conduz à banalidade”. Tudo agora é cinzento. Da Série Dissertação Inacabada, anos 1980.
“A beleza nos outros” que me rodeia deixou de ser nova. Opor-lhe qualquer coisa tornou-se ainda mais aborrecido.
E as ruas parecem-se cada vez masi com composições que não têm significado” Da série Dissertação Inacabada, anos 1980.
“Do livro de Namilov “O contínuo versus o Discreto na linguagem e no pensamento”.
Na literatura americana encontramos repentinamente queixas de que os esteriótipos do pensamento existentes paralizam as possibilidades criativas.
Seja o que for que uma pessoa fotografe, os americanos já começaram a fotografar outra coisa qualquer.
O Hábito de desejar o artístico, o que é único entre o que é o normal, tornou impossível a percepção do normal como dado”. Da série Dissertação Inacabada.
Contudo há uma fotografia, na série “Dissertação inacabada” que contraria esta assunção, esta imagem bem estruturada de um edifício ao incluí-lo entre outros cenários topograficamente não identificados da Kharkov contemporânea, Mikhailov intuitivamente tropeçou na imagem positiva do passado.
“Na verdade não vejo nada de mal”. Boris Mikhailov
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