quinta-feira, maio 31, 2007

Janelas

Janela é uma abertura na parede de uma casa que deixa entrar a luz, calor, fresco, cheiros...mas janelas servem também para espiar os outros como fez Hitchcock em “Janela Indiscreta”. Resguardados em casa espiamos o mundo exterior. O inverso também acontece, do exterior podemos espiar o mundo particular da cada um.
“Através de la ventana/ Through the window” é o tema da última revista Exit nº 26. Exit é uma publicação espanhola, seduzida por temas.

Todos os meses escolhe um e reúne à volta do tema escolhido uma série de fotografias de diferentes fotógrafos. A fotografia presta-se a isso, fotografar é escolher, é uma decisão subjectiva, e nada melhor que sob o mesmo tema acumular imagens de vários autores e tempos diferentes para dar uma noção das diferenças.
Quando ontem abri Exit, para além das janelas que vi, muitas outras se abriram na minha memória. Ao longo da história da fotografia cada janela é uma abertura sobre uma época.
Nas ruas das cidades quando a luz do sol começa a escassear e os habitantes regressam a casa, os interiores iluminam-se. Talvez inconscientemente, não somos tantas vezes levados a olhar para dentro das mesmas?

Vou abrir a janela, e mostrar as fotografias que me vieram logo à memória.

Erich Salomon, homem da sociedade, doutorado em direito, falando várias línguas preferiu o fotojornalismo às leis. Em 1928, as suas primeiras reportagens eram publicadas pela editora Ullstein e em breve muitos jornais europeus ilustravam as suas reportagens com as suas fotografias, como o Berliner Illustrierte Zeitung. A sua posição na sociedade berlinense facilitou-lhe a tarefa. Com uma intuição especial para o mundo da política, fotografava pela noite dentro as reuniões dos políticos da República de Weimar. Muitos sucumbiam ao cansaço e nas suas casacas eram fotografados a dormir sob a névoa do fumo dos charutos. Quando o acesso era-lhe vedado, Salomon não desistia, num escadote fotografava do exterior através das vidraças das janelas, os interiores iluminados.


Erich Salomon, Presidential Palace in Berlin, 1930

Em breve, nem através das vidraças das janelas, Salomon voltaria a fotografar. Em Janeiro de 1933 Adolf Hitler é nomeado pelo presidente Hindenburg, chancellor do Reich alemão, é o princípio do fim do novo fotojornalismo.
Em 1944, Salomon morrerá em Auschwitz.

Não muito distante na época, mas distante da Europa, Manuel Alvarez Bravo, na cidade do México onde vive, encanta-se com esta rapariga que olha através desta misteriosa janela.


Manuel Alvarez Bravo, "La Hija de los danzantes" 1933

Deixa-nos curiosos, porque não conseguimos ver o que ela vê. “Atget moldou-me a minha forma de olhar” diz um dia Alvarez Bravo, e muitas das suas fotografias como esta, “La hija de los danzantes”, representam bem a sua ideia de olhar.

Mas se “La hija de los danzantes” deixa-nos curiosos, Robert Doisneau, pelo contrário sacia-nos completamente a curiosidade com a montagem que fez das suas antigas fotografias.
Robert Doisneau, La Maison des Locataires, montagem feita em 1962

Doisneau fez com as suas fotografias o que os livros de história ilustravam em gravuras, as classes sociais por andares. Ainda não se pensavam nos condomínios fechados, e todos viviam no mesmo prédio.

Mas o fotojornalismo alemão, não morre com Hitler. Baseado nos foto-ensaios do fotojornalismo alemão, Henry Luce nos Estados Unidos lança a 23 de Novembro de 1936 a revista LIFE. Viverá 36 anos. Em 29 de Dezembro de 1972, a publicação é suspensa. A causa são os elevados déficits anuais. Se no início teve excesso de publicidade morrerá por falta dela.
Berenice Abbott foi assitente de Man Ray em Paris. Queria estudar escultura mas quedou-se pela fotografia. Se a descoberta de Atget se atribui hoje a Man Ray, é Abbott que tudo fará para o divulgar. Quando regressa a Nova Iorque, pressente o mesmo que Atget, a transformação rápida que se opera na cidade. As mansões da quinta avenida estão a desaparecer, e em seu lugar surgem os novos arranha céus. Á semelhança de Atget regista a mudança.

A 3 de Janeiro de 1938 a LIFE publica “A Woman Photographs the Face of a Changing City”, essa mulher é Berenice Abbott.


Arranha céus com as suas imensas janelas, contrastam com as casas que ainda resistem. Mas o grande contraste está na diferença do ponto de vista com que tira as duas fotografias.

Os arranha céus são fotografados com distância dum ponto de vista elevado. Muitas são as janelas mas não vemos absolutamente nada. Ao contrário da fotografia de casas coloniais que ainda resistem em Brooklyn, em que a fotografia é tirada ao nivel das janelas. As cortinas tapam o interior, mas a sensação de intimidade persiste. Sobre esta fotografia Maitland Edey no seu ensaio sobre esta revista escreve “One can look into those windows. One could almost imagine onself living there”.

Mas curioso é o texto que acompanha este foto-ensaio: “When told that a picture, like the mansion above, resembles a Hopper painting, she answers that she was doing this sort of thing before Hopper…”

Edward Hopper, Casa ao entardecer, 1935, óleo s/tela 92,1 x 127 cm

Jan Dibbets, tem a ideia de fotografar uma janela da rua Abbermuseum Eindhoven, e escolhe no solistício de Inverno o dia mais curto do ano. Á semelhança de “Parede de Tijolos” de Sol LeWitt, Dibbets com intervalos regulares de 10 minutos, compõe numa dinâmica serial 80 fotografias que marcam o tempo e a luz, fenómenos difíceis de percepcionar ao olho humano.

Jan Dibbets, The Shortest Day at the Van Abbemuseum, 1970

O que lhes interessa é o registo sequêncial do tempo. Se olharmos para uma janela isolada a obra perde todo o sentido. A sua montagem fotográfica, que esteve em exposição no Museu de Serralves em 2003, tem a escala de uma enorme janela.
É a época em que as janelas inspiram ideias.

E regresso às origens da fotografia com Abelardo Morell e a sua série câmara escura que inicia em 1991.
No caso de Morell é necessário conhecermos um pouco da sua vida para entendermos câmara escura. Em Janeiro de 1959, tinha Morell 10 anos, rebentava a revolução cubana. Com medo do mundo caótico da rua, Morell refugiou-se em casa. Aos 14 anos, muda-se para Nova Iorque com os pais, e vive numa cave. A casa era escura, e a sala só tinha uma pequena janela que dava para o passeio da rua. Trinta anos mais tarde é o nascimento do filho que o retém em casa. Mas Morell não precisa de sair, através de um orifício minúsculo que dispõe na janela da sua sala, o mundo exterior reflecte-se invertido na parede oposta, já não precisa de chegar à janela para ver o mundo. A câmara fotográfica é dispensada, porque qualquer espaço fechado por todos os lados menos por um, por onde entra a luz, funciona como uma câmara escura.

Abelardo Morell, Camera Obscura Image of Brookline View in Brady's Room, 1992

É o princípio da câmara escura desenhada por Leonardo da Vinci. Quanto mais pequeno o buraco mais detalhada é a imagem e maior o tempo de exposição necessário. Ao fim de várias experiências Morell fixou 2 cm o tamanho da abertura e 8 horas o tempo de exposição. O quarto e a sala da sua casa foram o início desta série, depois passou a fazer o mesmo nos quartos de hotel por onde viajava.
“These images, which I make in darkened rooms – seeing the exterior world from within – have a lot to do with why I became a photographer. This strange desire to observe the world “in camera” is, I think, what photography is all about”.

E vou terminar com o percurso que fiz pelo tunel do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa, quando na Lisboa Photo de 2005, Diogo Saldanha e Tomás Maia adaptaram, nos últimos 300 metros do tunel, todas as janelas

Janela do tunel do Aqueduto das Águas Livres

até ao terraço da Mãe d’Água com um pequeno orifício semelhante ao sistema de Leonardo da Vinci e de Abelardo Morell.

Através dos orifícios colocados nas janelas do tunel vi Lisboa invertida nas paredes.


Recomendo o nº26 de EXIT, "A través de la ventana".

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