“Uma manhã ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigante insecto”. Franz Kafka intuiu e profetizou uma das metamorfoses mais subtis da nossa espécie, a de chegarmos a ser parecidos – mas só parecidos – com seres humanos.
Esvaziado de ética e absorvido pela onda avassaladora do consumo, este homem, só parecido com o ser humano, metamorfoseou também a natureza ao transformá-la, não num “gigante insecto”, mas numa minúscula espécie que corre risco de extinção. Agora a terra, que não habita mas ocupa é parecida – mas só parecida – com a natureza.
Joel Sternfeld, February 28, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Na segunda metade do século XVIII, o homem encontrava na natureza um novo Deus. A bondade do homem, assim julgaram, emanava da divindade do mundo natural e o mito do “bom selvagem” têm origem nessa comunhão. Neste contacto com a natureza, contemplação e sentimento passaram a ser valorizados. O homem racional do século XVII, transformava-se agora num homem puro e sensível. A paisagem, que sempre ocupara um lugar baixo na pintura, substituía os temas históricos. O ar livre do campo passou a ser apreciado, e coube aos ingleses - com Constable (1776-1837), impor a paisagem como género sério na pintura.
Com o início da revolução industrial, o homem procurou abrir um espaço próprio na natureza. Em França, com a construção do caminho-de-ferro Paris-Orléans (1842), a floresta de Fontainebleau passou a ficar acessível. Os pintores que para lá foram e que seguiram as lições do inglês, encontraram aí um mostruário excelente de rochedos, regatos e charcos pitorescos. No outro lado do Atlântico os pintores americanos, a Hudson River School, olhava e seguia as lições dos pintores de Barbizon.
Thomas Cole, em Northampton no Massachusetts, no cume do Mount Holyoke, pinta uma vista aérea sublime, ameaçada por um céu aterrador.
Thomas Cole, View from Mount Holyoke, Northampton, Massachusetts, after a thunderstorm, - The Oxbow, 1836
Intuição? profecia do que estaria para vir?
Todos os dias, durante mais de um ano,2006/2007, Joel Sternfeld, fotografou os campos cultivados e baldios de Northampton no Massachusetts, o mesmo local de Thomas Cole, mas onde a natureza sublime dos românticos é agora mera ficção, pois rodeado de auto-estradas e chaminés industriais. A natureza precisa de ser escutada para ser reconhecida, e por mais vezes que lá vá “it’s never enough, there’s so much here”, conta Sternfeld. Nas suas fotografias, as estações do ano, alteradas com as mudanças climáticas, são difíceis de distinguir. Primavera? Verão? Outono?,
Joel Sternfeld, July 29, 2006, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, July 17, 2006, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, March 13, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, November 17, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, April, 19, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, April 20, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, August 19, 2006, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, September, 2006, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
só o Inverno, com as águas que ainda gelam, nos situam no tempo.
Joel Sternfeld, March 4, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Joel Sternfeld, March 27, 2007, The East Meadows, Northampton, Massachusetts
Na Idade Média, o livro de horas, seguia o ritual das horas litúrgicas dos mosteiros e sete vezes ao dia eram abertos para as orações. Na Idade Média, as actividades do homem eram estruturadas pelos ciclos do tempo - o ciclo lunar, os solstícios e os equinócios eram representados nas iluminuras juntamente com o ciclo dos trabalhos rurais, que ocupavam o homem cada mês do ano.
Livro de horas:"Les très riches heures du Duc de Berry", mês de Outubro, iluminura
Em Outubro, o mês das sementeiras, lavrava-se e semeava-se a terra.
Hoje, sem consciência histórica, e exilando-se do tempo por todas as mudanças que o transformaram, o homem ignora cada vez mais o passado para viver no presente um futuro cada vez mais incerto. O medo e a dúvida invadem agora o homem, que já não consegue controlar o que criou.
Em Oxbow Archive, nome que Sternfeld deu ao trabalho, inspirado no quadro de Cole, não vemos uma natureza agonizante de árvores e rio atrofiados pela poluição circundante, antes, Sternfeld mostra que a sua consciência está desperta no meio de um universo de aparências e é isso que torna este trabalho magnífico - Sternfeld fotografa a metamorfose mais subtil que está a transformar a natureza, Northampton no Massachusetts é agora parecido com a natureza, mas só parecido. Ver claro incluiu a capacidade de espanto e maravilhamento com a beleza que ainda persiste, mesmo num mundo que agora todo ele está virado às avessas.
Uma nova valorização da natureza não se produzirá enquanto o homem não for capaz de metamorfosear o “gigante insecto” em que se transformou novamente num ser humano. Se isso acontecer, e só se isso acontecer, é que a natureza pode ser auxiliada para não desaparecer.
sexta-feira, outubro 10, 2008
O estado do Mundo
Etiquetas:
No Mundo
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2 comentários:
Madalena, algumas destas imagens de Sternfeld vêm na última Aperture (já viu?).
Carlos,há dois dias recebi a Aperture na minha caixa de correio, precisamente há dois dias os mercados financeiros cairam a pique. Kafka serviu de ponte, para falar do homem de hoje, que já não consegue controlar o que criou, seja na natureza, economia...O que verifico contudo é a excelência e inovação dos fotógrafos, que estão atentos aos excessos do mundo actual.
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