segunda-feira, abril 16, 2007

Atget

Pode-se ver até ao dia 1 de Julho “Atget: Une rétrospective” na Bibliotéque National de France (BnF).
Não vou infelizmente poder comentar a exposição porque não a vi e é pouco provável que a veja. Falo então do grande fotógrafo que foi Atget.

Atget (1856-1927) para além de actor quis ser pintor, mas cedo desistiu porque não tinha habilidade para nenhuma destas artes, percebeu, porém, ao frequentar os estúdios de pintura, como poderia ganhar a vida: fotografar temas cujas imagens eram tão requesitados por pintores. Vendeu fotografias a Utrillo, Vlaminck, Derain, Kisling,Foujita....A clientela alarga-se, Museu Carnavalet, Biblioteca Nacional (onde decorre a exposição), Biblioteca Histórica da cidade, arquitectos, designers de interiores..., e se até aí Atget passara por muitas profissões, agora a fotografia agarrava-o para o resto da vida. Dizia fazer documentos para artistas, nunca se considerando ele um artista. Saía de casa ainda de noite, muitas vezes o percurso era longo, atravessava Paris de uma ponta a outra, e chegáva ao local que destinara fotografar ao romper do dia, antes do movimento aparecer.

Atget, La rue de L'Abreuvoir, 1925, XVIII arrondissement
Os estudiosos de Atget, referem que na fase final da sua vida, Atget já só fotografava o que queria. Paris nos anos vinte era um ninho de artistas, as esplanadas eram os locais de eleição para as discussões e troca de ideias, o movimento que aí se vivia, o fervilhar dessa vida intensa, foi tema central para fotógrafos e pintores.

Atget, Café, avenue de la Grande-Armée, 1924-25
Porque terá Atget preferido fotografar esta esplanada com as mesas já alinhadas e preparadas mais ainda vazia de clientes?
Mas as fotografias de Atget, aparentemente sem movimento, têm o seu movimento: da vista geral,

Atget, Terre-plein du Pont-Neuf, matinée d'hiver, 1925
depois a rua,

Atget, Un coin, rue de Seine, mai 1924
fachadas,

Atget, rue Jarente, 1911
portas,

Atget, rue Poullier, 1905-1906
batentes

Atget, rue de Mail, 1908
e finalmente entramos nas casas.

Atget, rue de Vaugirard,1910
Atget, Intérieur,1910,
Atget, rue Lepic, 1910,
Atget,Intérieur,1910
Durante anos o Jeu de Paume albergou os impressionistas. Ao arranjarem uma casa melhor, o Musée D’Orsay, os impressionistas deixaram o Jeu de Paume que se transformou em nada. Em Maio de 2004 um Jeu de Paume renovado, (infelizmente bastante mal, agora encerrado durante uns meses por necessitar de obras) abre as portas como um centro de divulgação da fotografia e imagem. Régis Durand à frente da nova instituição, expõe, em Novembro, no quadro do Mois de la Photo de Paris, (2004), “L’Ombre du temps” a segunda exposição do Jeu de Paume reconvertido.
Logo na primeira sala, juntamente com os Becher, Robert Frank, Walker Evans, Roni Horn,...as fotografias de Atget ocupavam uma das paredes. A crítica escrevia, “as fotografias que vemos de Atget não são muito conhecidas”. Era a primeira vez que via estas fotografias de Atget, mas não me surpreenderam, pelo contrário sabia que iria encontrar “Poterne des Peupliers, zoniers (XII arrondissement)”, 1913.

Atget, Album zoniers: Poterne des Peupliers, zoniers (XIII arrondissement) 1913
Régis Durand em “Le Temps de l’image”faz uma das melhores abordagens à obra de Atget: “...há já alguns anos, numa exposição julguei que “Poterne des Peupliers” fosse de Marville, só depois percebi ser de Atget...Desde há muito que passo frequentemente em Poterne des Peupliers, o local passou a ter para mim um significado...” e escreve um sub-capítulo Poterne des Peupliers: “Quem entra em Paris vindo da autoestrada do sul ou do sul-oeste, depara-se com uma série de escolhas, bifurcações binárias próprias destas vias, ... e que depois de eliminar diversas escolhas e seleccionar outras, vai parar a dada altura à saída da “Porte d’Italie” e aí ou escolhe subir uma rampa que nos leva à “Place d’Italie.., ou desce pela esquerda, por um “no man’s land” aparente...onde mais à frente à direita encontramos uma sinalização que nos indica “Poterne des Peupliers”. Se seguirmos...chegamos finalmente à Poterne des Peupliers. Poterne significa “porte dérobée, porte de derrière” du latin posterula e posterus, e gosto da ideia de entrar na cidade pela porta pequena, mas o prazer que me leva a entrar na cidade por esta porta tem outros fundamentos, a lembrança desta admirável fotografia de Atget. Esta fotografia diz-me que o local pouco mudou, é certo que agora tem esgotos subterrâneos...mas esta porta que levava ao campo perto de Gentilly, ficou quase na mesma. Sinto uma satisfação que não se explica só pela nostalgia que nos provoca, mas também pela ideia de que o local guardou o sentido de passagem, ..sentimos que mudamos de esfera que passamos um limite. É certo que hoje esta porta já não separa a cidade do campo, hoje são as “banlieus” que separam o campo da cidade...mas neste local sinto o fascínio, como nas personagens do livro de Pavese, da passagem da cidade para o campo e do campo para a cidade,... o campo que para a nossa imaginação é uma verdadeira “porte du monde”, a passagem para uma topografia imaginária...leva –me a estas experiências...é o que Pavese chama de “cadência de vida”, oscilando entre o sonho e realidade, entre o próximo e o longíquo, o detalhe e a abstração...e nesta dialéctica do ir e voltar, que é sempre diferente, pois diferentes experiências vão-se sobrepondo, fazem com que esta imagem seja de uma riqueza extraordinária...”
A complexidade da imagem fotográfica e a riqueza das relações que propõe, a mobilidade do pensamento através da imaginação, estados afectivos...que a "Poterne des Peupliers" lhe provoca é o que para mim distingue a abordagem de Durand de tantas outras.
À semelhança de Durand, quando vou a Paris, sigo um roteiro pouco turístico,


Atget, rue Mouffetard, 1925
desço a estreita rue Mouffetard até à larga e enorme Avenue des Gobelins (XII arrondissement) que termina na Place d’Italie. Para mim, as montras de Atget da Avenue des Gobelins fascinam-me como também já fascinaram os surrealistas que as publicaram no nº 7 e 8 de “La Révolution surréaliste”.
Atget, ambas Magasin, avenue des Gobelins, 1925

Quando vi pela primeira vez esta fotografia de Atget,
Atget, Magasin, avenue des Gobelins, 1925
as relações sucederam-se entre passado e presente, entre distância e proximidade, entre a montra da casa Xangai em Lisboa com os seus manequins de crianças e esta fotografia. Tal como a "Poterne des Peupliers", a casa Xangai, na Avenida da Républica, pouco mudou desde que eu em criança passeava com os meus avós que moravam perto.
Hoje, condena-se a nostalgia. Receia-se revelar sentimentos que emergem de imagens, cheiros..que nos transportam ao passado, receia-se que nos acusem de “velhos do restelo”, de retrógados, que o olhar é para a frente para o futuro. Os artistas, julgamos, são dotados de uma sensibilidade que lhes permite antecipar o futuro, mas é curioso observar, que muitas obras de artistas emergentes são um regresso ao passado individual de cada um.
É pena que Paris não fique mais à mão para visitar esta retrospectiva, mas pode visitar uma exposição virtual na mesma BNF, veja aqui.

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