domingo, março 15, 2009

Arquivo Universal: a condição do documento e a utopia fotográfica moderna


Margaret Bourke-White, Bread Line, Kentucky, 1937

Neste tempo de crise, numa América, onde mais de 2 milhões e seiscentas mil pessoas já perderam o emprego, a volatilidade das bolsas tornou-se padrão. Depois de quebras acentuadas, alguns indicadores e notícias, divulgados quarta-feira passada, fizeram subir estrondosamente o mercado: o gigante General Electric Co, viu descer o seu rating de crédito mas não tanto como o mercado esperava; o índice de vendas a retalho nos Estados Unidos, embora muito baixo, foi melhor que o esperado e o gigante da indústria automóvel, a General Motor Corp., veio dizer, que não precisava para já, dos dois biliões de dólares da Reserva Federal. Más notícias, são interpretadas pelo mercado como boas, porque afinal, melhores do que os analistas esperavam.

O paradoxo faz lembrar esta imagem, publicada na revista Life, nos anos da Grande Depressão, que o CCB agora apresenta, na magnífica exposição, “Arquivo Universal”, que recomendo vivamente.


Para o comissário Jorge Ribalta: “esta exposição pretende contribuir para uma compreensão da complexidade da noção de documento na história da fotografia”, e quem à entrada, opta pelo lado esquerdo, (afinal, como percebi depois, o lado contrário do início da exposição), entra numa sala, onde revistas,



filmes,


livros,


exposições


FSA, reprodução da exposição do MoMA, em 1962

- os espaços discursivos por excelência da fotografia - constituem um verdadeiro arquivo documental da Grande Depressão.

A euforia bolsista, dos loucos anos vinte, terminava abruptamente e as tristes e desesperadas filas por um prato de sopa ou de um emprego passaram a marcar definitivamente o retrato documental da década.
Em 4 Março de 1933, o democrata Franklin Delano Rossevelt, chegava a Washington para tomar posse como 33º Presidente dos Estados Unidos. Ninguém tinha a certeza se os pacotes legislativos para relançar a economia iriam funcionar, “o programa político e o modo de o concretizar também não eram particularmente claros, resultavam de uma mistura de experimentação, intuição e alguma confusão”, escreve Roy Jenkins, o político britânico, na sua biografia sobre Roosevelt.
No texto de apresentação da exposição, Ribalta refere o seguinte: “ A fotografia aparece precisamente na encruzilhada dos discursos da arte moderna e do positivismo filosófico e científico, cujos efeitos afectam (…) as formas modernas de gestão política. (…). Nesta encruzilhada é fundamental o discurso da fotografia como linguagem universal, que irá ser determinante daquilo a que chamamos de utopia fotográfica moderna”.
Poucos anos depois, Karl Popper, na sua obra filosófica e científica, propunha, na sua incursão pelo pensamento político, que as funções e políticas específicas de cada governo deveriam assentar no ensaio e erro, pois para ele, só uma intervenção de tipo parcelar – e não de tipo global ou utópica – seria compatível com essa atitude de experimentação. Popper, recusava a utopia e a aspiração à perfeição como princípio inspirador da acção política, em suma a sua crítica na ideia de engenharia social utópica, visando um modelo de sociedade perfeita, era incompatível, com a democracia liberal, de espírito acentuadamente anglo-saxónico, cujas políticas estavam sujeitas à constante e gradual correcção, à tal “mistura de experimentação, intuição e alguma confusão” - o garante da democracia liberal.
Ao contrário, na Europa continental, sob a influência do “positivismo filosófico e científico”, como bem refere Ribalta, a democracia era assumida como a expressão política de um projecto racionalista, assente num modelo radicalmente novo, onde a razão, com R maiúsculo, na concepção cartesiana de uma busca obsessiva da certeza e consequentemente na sua incapacidade de viver com o conhecimento falível e experimental, levava a romper com os hábitos e costumes de uma cultura, que opunha as democracias liberais aos totalitarismos nazi, fascista e comunista, que se alastravam, na velha civilização europeia. E na sala seguinte, essa ambição revolucionária, em reorganizar a vida social a partir de cima, é bem visível na reportagem de Shaikhet e Alpert: “Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo”,





editado pelo nº4 da revista Soviet Photo, 1931,


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931

onde a fotografia, como documento, servia e promovia esse modelo, fundamentado nessa ideologia de um projecto de perfeição - a utopia socialista.

A reportagem fotográfica, com a sua narrativa linear, compreensível e acessível a todos, porque de fácil leitura - o bairro onde vivem, a fabrica onde trabalham, os locais comunais de lazer…- “o discurso da fotografia como linguagem universal”, como refere Ribalta, era enaltecido pelo partido e a pintura, criada para contemplação estética e apreciada pela antiga burguesia, era substituída por este novo meio ao serviço da produção de uma arte funcional. Mas se no início da U.R.S.S, as reportagens de Alexander Rodchenko, Elizar Langman e Boris Ignatovich, todos eles em exposição, resistiram à uniformização do modelo ideológico de perfeição utópica, coexistindo tipos distintos de documentário fotográfico, em breve desapareceria pois acusados pelo partido de darem uma visão fragmentada da nova reconstrução do país. Os grandes planos, os ângulos originais e os pontos de vista inusuais, eram vistos como artifícios, utilizados pelo Ocidente burguês, e em relação a esta fotografia,


Elizar Langman, Young Commune "Dinamo", 1930

de Elizar Langman, a crítica escrevia que era chocante que a chaleira, para além de obstruir a visão da vida comunal dos estudantes, fosse maior que as cabeças dos mesmos. Também Rodchenko, com o seu “Pionier”,


Alexander Rodchenko, Pionier, 1930

em exposição numa das paredes da sala, era criticado, pois muitos viram nela uma crítica à juventude, pela deformação inadmissível, causada pelo ângulo com que fora tirada a fotografia.
Pelo contrário, Shaikhet e Alpert, embora por vezes utilizassem planos inclinados,


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931

a perspectiva tradicional era a mais utilizada,


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931


Shaikhet e Max Alpert,"Um dia na vida de uma família de classe operária em Moscovo", 1931

e se Shaikhet e Rodechenko, ambos mostrassem cidades, como epicentro da modernidade, quer no plano urbanístico, como no plano individual,


Alexander Rodchenko, Paving Streets: Leningradskoe Highway, 1929

o modelo de fotojornalismo de Shaikhet,


Arkadii Shaikhet, Steamroller, Soviet Photo, Moscovo, 1931

acabou como o modelo adoptado pela utopia socialista.


Mas regressemos ao início, ao ponto de partida da exposição, que inicia, não na Grande Depressão, mas com Lewis Hine, o fotógrafo cujo trabalho para o National Child Labor Committee, “pode considerar-se fundador”, como diz Ribalta, do documentário reformista. Hine, cuja missão, enquanto fotógrafo documental, era mostrar as coisas que deviam mudar, como expressa a denúncia do trabalho infantil,


Lewis Hine, Pin boys in Subway Bowling Alley, New York City, 1909


Breaker boys in coal chute, South Pittston, Pennsylvania, January, 1911


Lewis Hine, Young girls knitting stockings in Southern hosiery mill, 1910

representa uma figura mediadora entre os grupos desfavorecidos e o Estado com o propósito de introduzir reformas e melhorias para as classes trabalhadoras” - a aprendizagem, que no dizer de Popper, conduzia ao aliviar do sofrimento humano.

O espectro histórico da exposição é amplo, e se ainda nesta sala, as condições de vida da classe trabalhadora e os efeitos sociais da crise económica e hiperinflação, da república de Weimar, é representada com imagens de desempregados e marginalizados, fotografados por Walter Balhause e os operários nas fábricas de Eugen Heiling,




lado a lado com a classe operária de Shaikhet e Alpert e o projecto “Harlem Document” da Photo League americana, numa outra sala, longe desta, August Sander, na mesma Alemanha de Weimar, convive, numa justaposição magnifica, com o projecto “Mass Observation” do fotógrafo Humphrey Spender e do cineasta Humphrey Jennings, mas esse diálogo, ficará para um próximo post.

2 comentários:

sem-se-ver disse...

(linkei este seu post :-)

retouching disse...

I love the old photos from around the depression. Tell amazing stories!