terça-feira, dezembro 30, 2008

O "Grand Tour"

No século XIX, século fecundo em invenções e descobertas, o barco a vapor, o substituto das embarcações à vela, revolucionaria o transporte marítimo. A máquina a vapor, conseguindo mover os barcos contra ventos, marés e correntes, reduzia o tempo e os custos da navegação. Com a previsibilidade da duração das viagens, surgiram os horários informando a hora da partida e de chegada dos navios. Esta nova possibilidade, a par com a fotografia, cujo invento acabava de ser divulgado, (1839), reuniram as condições para o florescimento de um novo negócio – as viagens em grupo. Se a invasão de Napoleão Bonaparte ao Egipto (em 1798), abriu a via aos arqueólogos que para lá se deslocaram no estudo das civilizações antigas, logo os grupos de Thomas Cook, o inventor da viagem organizada, (1868), não mais deram sossego às pirâmides que se encheram de “cooks” e “cookesses”, como lhes chamaram os franceses.

Émile Bechard, Subida à grande Pirâmide, Egipto, c. 1875

Vivi a Istambul da minha infância como um lugar em dois tons, como a cor do chumbo, semiobscura, no estilo das fotografias a preto e branco; e é assim que me lembro da cidade”, escreve Orhan Pamuk, o Nobel da literatura, no seu último livro “Istambul – Memórias de uma cidade”, publicado este ano pela Editorial Presença. Ao longo das memórias, a gloriosa Istambul de outrora, que durante a infância, incêndio após incêndio, Pamuk viu desaparecer gradualmente, só lhe é agora acessível através dos escritos e das imagens que os viajantes ocidentais deixaram. “Para saber como seriam as ruas de Istambul em 1850 e como se vestiam as diversas categorias da população”, Pamuk olha para essas imagens simultaneamente assustadoras e atraentes,


Antonio Beato, Constantinopla, 1854


J.Pascal Sebah e Joaillier, Mercadores turcos, Constantinopla, c.1870

pois “com um sentimento de culpa, de humilhação e de inveja, reduzimos rapidamente a nada os últimos vestígios de uma grande cultura e de uma civilização de que não soubemos ser dignos herdeiros”.

No século XIX, século em que as viagens ao Oriente se tornaram uma moda, o itinerário do “Grand Tour”, traçado por Flaubert e Maxime Du Camp, na sua missão oficial (1849-51), começava no Egipto,


Albert Goupil, Egipto, 1869

atravessava a Palestina,


Albert Goupil, Acampamento junto ao Monte Sinai, 1868


Félix Bonfils, Mar Morto, Palestina,c.1875

Síria,


Félix Bonfils, Porto de Tripoli, Síria, c. 1875

Líbano,


Louis Vignes, arredores de Beirute, c. 1864


Louis Vignes, interior de um salão em Beirute, c. 1864

outrora domínios do Império Otomano, e terminava na Turquia. No século XIX, Istambul, a cidade do sultão, cujo Império agonizava com a delapidação territorial e o encurtamento das fronteiras, era a derradeira cidade oriental que os europeus visitavam antes de regressarem a casa.

Se no Egipto, (a primeira paragem do “Grand Tour”), os fotógrafos encantaram-se com a esfinge semi-enterrada nas areias do deserto


John Green, Esfínge, Egipto, 1854

e com a grandiosidade de uma civilização tão rica quanto misteriosa,


Maxime Du Camp, Kalabschen, 1850


Maxime Du Camp, Ibsamboul, Núbia, 1850

as grandes mesquitas monumentais,


James Robertson, Mesquita Ahmedieh,Cosntantinopla, 1854

os minaretes, os edifícios históricos,


James Robertson, Constantinopla, 1854

os imensos fontanários espalhados pela cidade


Antonio Beato, Fonte do Sultão Mahmoud, Constantinopla, 1854


James Robertson, Fonte Top Hané,Constantinopla, 1854

e os dois cemitérios com os seus ciprestes,


James Robertson, Grupo de turcos não muçulmanos num cemitério, c.1860

localizados bem no coração da cidade - locais escolhidos pelos não muçulmanos endinheirados para discutir as últimas novidades e exibirem os trajes vistosos,


James Robertson, homem turco no cemitério Scutari, 1860

não escaparam aos fotógrafos. Mas foi contudo Flaubert, quem redigiu as linhas mais sensíveis em relação aos cemitérios pois o primeiro a reparar no afundamento das pedras tumulares “que, com o tempo, acabam por se enterrar e se perder na terra, tal como a memória dos mortos que acabam por ser esquecidos”.


J.Pascal Sebah e Joaillier, cemitério turco,c.1870

Em nome da ocidentalização, os cemitérios foram deslocados para lugares assustadores cercados por altos muros que mais parecem prisões, sem ciprestes, sem árvores e sem horizonte.

Hoje, no nosso século, na Istambul de Pamuk, “as pessoas limitam-se a viver no meio desses vestígios históricos, lembrando aos mais sensíveis, que a força e a riqueza passadas desapareceram…As fontes centenárias, agora transformadas em montes de mármore com as torneiras arrancadas, e enterradas em toneladas de betão, rebaixadas ao nível das ruas por causa das sucessivas camadas de asfalto – quando dantes se subia para a fonte por um lanço de escadas de pedra, fazem lembrar os vestígios de um tempo glorioso”.


J.Pascal Sebah e Joaillier, Fonte d'Achmet III, Constantinopla,c.1870

Das sete maravilhas do mundo, pela primeira vez enumeradas num belo poema de Antipater de Sídon, em 140 a.C., resta apenas as Pirâmides de Gizé, todas as outras, os Jardins Suspensos da Babilónia, o Templo de Artemisa, a Estátua de Zeus, o Túmulo de Mausolo, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria, sossobraram às forças da natureza, destruídas por terramotos e fogos.
Para os istambulenses, a ocidentalização da República de Ataturk Kemal enterrou definitivamente a glória de Istambul, mas os escritos e as imagens dos viajantes ocidentais da época do “Grand Tour”, não deixam esquecer a Pamuk a gloriosa Istambul de outrora.

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