terça-feira, dezembro 16, 2008

Nos interstícios das imagens

"Changeling", (2008), o novo filme de Clint Eastwood, foi estreia, quinta-feira passada, na Cinemateca, que este mês inicia um ciclo dedicado ao realizador e actor.
“Changeling”, lemos na folha de crítica distribuída na sala, “ tem uma paleta de cores quentes que servem uma cuidada reconstituição de época (Los Angeles, entre 1928 e 1935), porque essa reconstituição de época é especialmente fotogénica...”.


Em "Letters from Iwo Jima", (2006), Eastwood, utiliza a fotografia a preto e branco de Joe Rosenthal como ponto de partida para a sua narrativa. De uma imagem estática, como é a fotografia, Eastwood desliza para um outro mundo, um mundo, onde as fotografias são empurradas e atiradas incessantemente para outras vistas. No cinema, que nasceu da fotografia, há sempre um referente fotográfico, o seu material é indiscutivelmente fotográfico, mas no cinema, ao contrário de uma fotografia, que nos permite fechar os olhos e imaginar, o realizador é que nos conduz para o seu mundo imaginário.

Disse Jean-Luc Godard que: “A fotografia é verdade. O cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”, será verdade? Será que um filme é uma mera sucessão de fotogramas que originam movimento? Godard também disse que no cinema “eu sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam completamente realistas”.

Tudo isto a propósito de uma fotografia de Manel Armengol,


Manel Armengol, Espanha, Sant Adrià, Barcelona, 1978, Paisagem industrial e edifícios

em exposição no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, que ao vê-la me fez deslizar para outros mundos, mais especificamente para o universo de Michelangelo Antonioni.

“O Eclipse”, (1962), o último filme a preto e branco de Antonioni, é visto pela crítica como uma elegia sobre a inconstância do amor. O filme inicia com uma ruptura e avança com um novo encontro, onde contudo não há qualquer certeza que irrompa num novo amor. No meio da rua, no separador, Vittoria pára e replica “Aqui estou eu, a meio caminho”, e é a meio caminho que a relação parece ficar até ao fim.

Na fotografia de Manel Armengol, um separador de arbustos divide um bairro da cidade de Barcelona. A indústria poluente de um lado, a cidade dormitório do outro. O décor, que enquadra Vittoria em “O Eclipse”, revela os novos dormitórios que se constroem à volta da cidade - elementos de betão empilhados,


O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

tapumes,


O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962


O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

ruas desertas



O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

despojadas de qualquer ser humano e de qualquer sentimento, tal como o bairro, que na fotografia de Armengol, dorme na obscuridade.

Em “O Eclipse”, o realizador conduz-nos e com ele passamos a divisória que separa as paisagens desumanizadas dos subúrbios, medidas a régua e esquadro, que na década de cinquenta se alargavam e cresciam em altura,






O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

para o ruído e excitação do centro da cidade, onde na Bolsa de Valores, Vittoria encontra o seu novo amante.



O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

A narrativa, que avança por oposições, entre silêncio e ruído, geometria e desordem, são instantes de profecia, de um novo mundo materialista que se avizinha.

“Deserto Vermelho”, (1964), que se segue a “O Eclipse”, desenrola-se em Ravena, uma cidade industrial onde as fábricas petroquímicas dominam. É o primeiro filme a cores de Antonioni, onde no novo mundo moderno, em expansão económica, os fumos das chaminés fumegantes, já não se confundem com os céus cinzentos do preto e branco da fotografia.




Deserto Vermelho, Michelangelo Antonioni, 1964

Em “Deserto Vermelho”, o drama desenrola-se em torno da mesma Mónica Vitti, agora Giuliana. Vítima de um acidente de automóvel, não mais consegue recuperar a confiança em si mesmo e isola-se mesmo dos que lhe são mais próximos. No final do filme, Ugo, o filho de Giuliana, pergunta se a nuvem amarela dos produtos químicos lançado pela chaminé da fábrica, tal como as chaminés das fábricas do bairro de Barcelona, podem fazer mal aos pássaros que a atravessam. “Eles aprenderam que as nuvens são perigosas e, por isso, vão por outro caminho” responde-lhe a mãe.

Na imagem estática de Armengol, a geometria, a linha recta que divide o bairro de Barcelona, são pontos de partida para o universo narrativo do cineasta, que nos desliza e empurra para esse mundo moderno, um mundo onde os elos naturais dos seres humanos encontram um fim.


O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962

Afinal não será nos interstícios das imagens em movimento que se esconde o verdadeiro mistério do cinema?


3 comentários:

João Amaro Correia disse...

andamos a ver os mesmos filmes:

http://khiasma.blogspot.com/2008/12/cest-lennui-lil-charg-dun-pleur.html


http://khiasma.blogspot.com/2008/02/o-desejo-vigiado-geometria-do.html


j

almagrande disse...

Curioso falar num realizador em que, num dos seus filmes, o mistério do cinema gira em torno de uma imagem estática. Refiro-me a Blowup.

Madalena Lello disse...

"Blow-up" é a história de um fotógrafo sem ser a sua história, pouco sabemos da vida do fotógrafo, nem mesmo o seu nome.Antonioni em “Blow-Up” desmaterializa a fotografia, e de ampliação em ampliação, transforma a fotografia em pintura abstracta, “o objecto propriamente dito decompõem-se e desaparece” dirá Antonioni. O actor David Hemmings, o fotógrafo sem nome, tenta a narração com as sucessivas ampliações que pendura lado a lado no seu estúdio. Mas a fotografia por si só não representa a verdade, é necessário um testemunho, mas o amigo de Hemmings está demasiado bêbado para ir ao parque servir de testemunha, e a fotografia perde o sentido fora do contexto. Cabe a cada um de nós, espectadores de “Blow-Up”, querer ou não entrar no jogo (de ténis sem bola) de Antonioni. Para o mestre do cinema a fotografia é pessoal e subjectiva, “há um momento em que agarramos a realidade, mas o momento passa”.