quinta-feira, outubro 25, 2007

O cinema a fotografia e a cor

Este ano, uma nova revista de fotografia apareceu nas bancas, Photoicon. Só há dias vi o número 2, na capa Harold Llloyd’s: Secret Vice despertou-me a atenção.
O artigo sobre Harold Lloyd’s, um dos génios do cómico nos anos do cinema mudo,

os outros eram Charlie Chaplin e Buster Keaton, revela a curiosidade e entusiamo com que Lloyd’s, depois de deixar o cinema, se dedica a fotografar os amigos de Hollywood, os passeios à Europa e a Califórnia onde vivia numa mansão.

A imagem do homem pendurado nos ponteiros de um enorme relógio no cimo de um edifício de vários andares, fotograma do filme “Safety Last” (1923), tornou-se numa imagem símbolo do cinema mudo. O personagem, o homem dos “óculos” corria riscos, por vezes reais, para salvar a sua amada, no telhado do prédio. Lloyd à época explorava as técnicas específicas do meio para criar e ampliar a ilusão da realidade. A composição, a orquestração das imagens,


os ângulos picados e contra-picados, também muito utilizados pela fotografia, e a montagem, fizeram dos seus filmes grandes filmes. Stanley Kubric disse uma vez “o que distingue o cinema de todas as outras artes é a montagem”. Em “Safety Last” o homem pendurado nos ponteiros do relógio e a cidade em baixo vista em picado, são duas situações que Lloyd intercala ao mesmo tempo no filme a fim de aumentar a tensão, os riscos que o homem dos “óculos” corria para salvar a amada eram assim ampliados. Lloyd foi um grande ilusionista do cinema mudo e a arte da pantomina atingia o seu auge, sobretudo nas comédias,

em que a história contava-se mimando-a. Mas no fim da década de 1920, o som chegara e para muitos dos cineastas do mudo a transição foi dolorosa. Os gestos eram agora substituídos pelo diálogo. “Welcome Danger”, 1929, o primeiro sonoro de Lloyd, foi um fracasso. Aurora, 1927, de Wilhelm Murnau, uma das obras primas do cinema mudo já não foi o êxito que se esperava. Para Murnau, o sonoro foi a morte prematura do cinema mudo. Pouco antes de morrer Murnau escreveu, “O filme sonoro significa um grande progresso no cinema. Infelizmente veio cedo demais: começavamos agora a encontrar uma via para o cinema mudo, valorizavamos todas as possibilidades da câmara...”. O sonoro exigia uma abordagem mais realista, e na década de 1930, a América vivia os anos da depressão que se seguiram ao crash da bolsa, a comédia chegara ao fim.
Mas a indústria cinematográfica americana abraçou logo de início todos os desenvolvimentos tecnológicos, e o cinema não só passou do silencioso a sonoro, como deixou o preto e branco para a cor.



O cinema entrava numa nova fase, e em 1947 depois de realizar mais de 200 filmes era tempo de Lloyd se retirar.
Em “Os dez mandamentos”, Cecil B. De Mille usou o primeiro sistema da technicolor, a utilização de dois inter-negativos, onde o azul não era reproduzido. Quem em criança, como eu, viu a água lodosa do rio Nilo transformar-se em sangue, ficou como diz Martin Scorsese “com estas imagens presas para a vida”. Na década de 1930 a technicolor aperfeiçoara o sistema de cores com a introdução de três inter-negativos e o novo processo cobria agora o espectro completo de cores.
O artigo da revista Photoicon mostra-nos agora as fotografias a cores de Harold Lloyd. A colecção com mais de 300 000 slides, que nunca foi publicada, vê agora a luz do dia, pela acção de Suzanne Lloyd, a neta, que gere a fundacção “The Harold Lloyd Trust” onde estão arquivadas.

Harold Lloyd, Cap Ferrat - Eden Roc, 1956

Harold Lloyd, BangKok Boat Narbour, 1964

Harold Lloyd, Las Vegas, Flamingo Hotel, 1955

Harold Lloyd, Las Vegas, Golden Nugget, 1955

Harold Lloyd, Las Vegas at night, 1955,

Harold Lloyd, New York City, central park, 1953

Harold Lloyd, Paris, Romance, 1953

Se os fotogramas dos seus filmes se assemelhavam às fotografias de época,

Harold Lloyd, fotograma

André Kertész, Distortion Portrait Carlo Rim, capa da revista Vu 1930

Harold Lloyd, fotograma

Lewis Hine, 1931

Lloyd é captivado pela cor da fotografia,

Harold Lloyd, Golden Gate Bridge, View from the top, 1954


Harold Lloyd, Muscle Beach #2 Double Play, 1955

Harold Lloyd, Muscle Beach #1 Triple play, 1955

ao contrário de tantos outros fotógrafos como, Max Yavno que na mesma época prefere continuar a fotografar a Golden Gate em S. Francisco e a Muscle Beach, a praia da Califórnia, a preto e branco.

Max Yavno, Golden Gate Bridge, 1948

Max Yavno, Muscle Beach, 1947

Tal como acontecera no cinema, a fotografia também aperfeiçou a cor. Em 1936 a Eastman Kodak Company comercializa o primeiro filme a cor, o Kodachrome Color Film, e um ano mais tarde a Agfa lança o Agfacolor Neu. Os autocromos, são rápidamente substítuidos. A invenção dos irmãos Lumière, comercializados a partir de 1907, requeriam uma técnica sofisticada: a placa de vidro era coberta com uma fina camada de grãos de amido de batata, tingidos de vermelho, azul e verde, e o resultado aproximava-se duma pintura pontilhista

Ampliação 12 x de uma placa autocromo

e as cores não tinham a mesma vivacidade. O Kodachrome e a Agfacolor são os primeiros rolos a cores fáceis de usar por todos. Uma nova era abre-se na fotografia moderna. Se no início os filmes eram caros, com o fim da guerra, os preços tornam-se mais acessíveis e a rica palete de cores vibrantes que estes filmes permitiam cativaram os fotógrafos amadores e a publicidade. Harold Lloyd foi um deles. As fotografias que se seguem são todas tiradas em Kodachrome por fotógrafos amadores.

Jerry and His'57 Chevy, Kansas City, Kansas c.1962

Girl drinking milk, Allentown, Pennsylvania, 1951

River Party, South River, North Kingtston, Rhode Island, 1956

Meats e Gas, Hartwell, Georgia, 1958

Flaming Barbeque, Tarzana, California, 1965

Boys on Christmas, Emmett, Nebraska, 1950

First Televison, Port Byron, Illinois, 1950

Lake Waco, Waco Texas, 1958

A fotografia a cor popularizava-se e as revistas e jornais enchiam-se de anúncios publicitando a utilização da cor

Anúncio no Paris Match

e os foto-ensaios das revistas substituiam gradualmente o preto e branco pela cor.



Life, fotografias de Ernst Haas, 1953

Mas os fotógrafos, ao contrário dos realizadores de cinema, não a quiseram utilizar: para Robert Frank o preto e branco era a cor da fotografia, Walker Evans, antes de ser seduzido pela cor dos polaroids, dizia que a fotografia a cores era banal, Cartier-Bresson, que fotografava a cores para as reportagens do Paris Match,


Paris Match, Les Paysans sont-ils condamnés a mort, 1960, fotografias Henri Cartier-Bresson

e que organizava nas suas fotografias o caos da realidade referia-se da seguinte maneira à cor “ imaginem que teriamos que pensar tambem na cor ao fim disto tudo”. Os argumentos dos fotógrafos e críticos hierarquizaram a fotografia, “if you can’t make it good, make it red” e a cor ficou arredada para os amadores e publicidade, a cor não podia ser artística.
Só na década de 1970 é que a fotografia a cores é reconhecida por galeristas e curadores de museus. Em 1972, a série “American Surfaces” de Stephen Shore foi exposta na Light Gallery em Nova Iorque, e toda a série foi comprada por Weston Naef par o Metropolitan Museum of Art. Em 1976 é a vez da exposição de William Eggleston organizada por John Szarkowski no Museum of Modern Art e publicada em livro “William Eggleston’s Guide”.

Mas curiosamente, só agora, no século XXI, o trabalho a cores, efectuado pelos fotógrafos do preto e branco sairam do esconderijo para onde foram remetidos. Vamos vê-los no próximo post.
Ler mais...

segunda-feira, outubro 22, 2007

Os meses do ano

Estamos a chegar ao fim de Outubro e ainda nos vestimos com as roupas frescas do Verão.

Na Idade Média, o livro de horas, livro de orações da nobreza e da burguesia rica, seguiam o ritual das horas litúrgicas dos mosteiros, sete vezes ao dia eram abertos para as orações, daí chamarem o livro de horas. Compostos por textos de evangelhos, orações à virgem, ofícios dos mortos, festas do ano litúrgico, tinham também um calendário. Na Idade Média, o poder do senhor feudal media-se pelas terras e castelos que possuia e a sociedade francesa era essencialmente rural. As actividades do homem eram estruturadas pelos ciclos das estações e pelas festas religiosas. O duque, Jean de Berry, um dos mais importantes nobres da época, irmão do rei, Carlos V, do duque d’Anjou e do duque da Bourgogne, possuia imensas terras, castelos, e uma magnífica colecção de livros: missais, bíblias, salmos, e quinze livros de horas, entre eles o célebre “Les Très Riches Heures du Duc de Berry”, agora num museu. As iluminuras do calendário do livro, pintadas pelos irmãos de Limbourg, Jean, Paul e Herman, entre 1440-1489, são hoje uma preciosidade pela beleza, minúcia e detalhe com que nos revelam os trabalhos da vida rural e costumes da época. A percepção do tempo era ciclíca, as iluminuras representam o ciclo lunar, os solstícios e os equinócios, mas acima de tudo as representações evocam o ciclo dos trabalhos rurais, tarefas específicas, que ocupavam o homem em cada mês do ano.
Outubro é o mês das sementeiras, lavra-se e semeia-se a terra.
"Les Très Riches Heures du Duc de Berry", Mês de Outubro, Iluminura.

A cena desenrola-se na margem esquerda do Sena e ao fundo vê-se o palácio do Louvre, residência do rei, irmão do duque, em Paris. As terras que estão a ser lavradas e semeadas no primeiro plano pertencem ao duque de Berry. No plano intermédio, pessoas da cidade passeiam na margem do Sena.
detalhe
Passando as muralhas da cidade entrava-se no campo, numa paisagem domesticada pelo homem.
É Outubro e o tempo já está fresco, o camponês que semeia a terra tem as pernas e a cabeça protegidas.
detalhe
O outro homem a cavalo utiliza uma grade para desterroar e revolver a terra com uma pedra em cima para enterrar e lavrar melhor, também está agasalhado. Na iluminura de Julho, mês da ceifa e tosquia do gado, o tempo é quente.
"Les Très Riches Heures du Duc de Berry", Mês de Julho, iluminura
O castelo du Clain perto de Poitiers uma das residências do duque de Berry, ocupa o fundo. Dois camponeses ceifam com foices o trigo, minuciosamente ilustrado. Ambos usam chapéus de palha e camisas frescas abertas. No que está virado de frente podemos até ver a roupa interior.
Detalhe
À direita tosquia-se as ovelhas, onde a lã acumula aos pés dos dois tosquiadores.
detalhe
É Julho e o tempo está quente.

Em 1950 Paul Strand deixa a América pela Europa, sete anos antes deixara também para trás o cinema documental. “Native Land” o seu último filme, leva-o novamente à fotografia, à Nova Inglaterra. Em 1945 está a fotografar a Nova Inglaterra. Em 1950 edita “Time in New England”, com textos escolhidos por Nancy Newhall. Quando chega a França procura uma aldeia para um documentário fotográfico. Juntamente com Hazel, sua mulher, percorrem o país, mas Strand não encontra a aldeia que quer. Apesar disso, Strand gostou das fotografias que tirou em França, e em 1952 edita “La France de Profil” acompanhado de um texto do poeta Claude Roy. Mas não desiste da ideia da aldeia, e em 1954 desafia o realizador de cinema, Cesare Zavattini, que o ajude a procurar o local. Enquanto foi realizador Strand imaginou o livro que agora quer fotografar, mas desta vez bate à porta certa, pede a um realizador, que o ajude a procuraar. Cesare Zavattini, realizador neorealista, explora as emoções e os acontecimentos mudanos do dia a dia. Em 1952, comenta numa entrevista “ The old realism didn’t express the real. What I want to Know is the essence, the really real, the inner as well as the outer reality”. Depois de algumas hesitações, Zavattini sugere Luzzara a Strand, a aldeia onde nascera e vivera em pequeno.
“Un Paese”, 1955, uma aldeia, é o primeiro trabalho de Strand onde os retratos são a essência do livro.
Numa carta a Nancy e Beaumont Newhall, em Maio de 1958, Strand escreve o seguinte sobre o livro ”...Zavattini...suggested Luzzara, on the Po, his birthplace.
Paul Strand do livro "Un Paese"
It was by then well into November, so we decided to go to Luzzara on our way back. Well, visually at first sight it was the last place one would pick; flat country; nondescript architecture, the non picturesque to the ntn degree. However we felt we must do the book there no matter what, for Zavattini loved Luzzara, Knew everyone there and was Known to them, an enormous asset to begin with.
Paul Strand do livro "Un Paese"
… coming back the following Spring, just had to get down to it and dig. … That is the story of how this “portrait of a village” finally happened, this very American idea…”
Os textos de Zavattini que acompanham as fotografias são relatos das vidas e memórias das pessoas que ficaram na aldeia, mas Zavattini não resiste e ao texto mistura também as memórias do tempo quando em pequeno viveu em Luzzara.
“ A terra nunca dá o suficiente”, escreve Zavattini em “Un Paese”, “e cada mês tem as suas tarefas precisas. Em Janeiro, com a neve preocupamo-nos com o gelo das vinhas que temos que proteger, mas acima de tudo
Paul Strand do livro "Un Paese"
são os instrumentos agrícolas que temos de reparar: ancinhos, enxadas, pás e precisamos de vassouras fortes para varrer os estábulos e as eiras.
Paul Strand do livro "Un Paese", "It costs 150 lire to sharpen a scythe, 40 lire for scissors, 50 lire for a timber-ax..."
Em Fevereiro é a época em que as vacas dão à luz e o vinho é engarrafado na mudança da lua.
Paul Strand do livro "Un Paese", "...From April to December we sell thirty kilos of bread a day, and from January to March about eighteen kilos, because during that period, people work less and consequently eat more polenta..."
Em Março os bezerros são vendidos no mercado, e a produção de leite aumenta,
Paul Strand do livro "Un Paese"
Paul Strand do livro "Un Paese"
esse leite forte que nos deixa bigodes brancos que limpamos com a mão depois de uns longos golos. Em Abril cavamos a terra para semear o milho, e desinfectamos a terra para evitar que os pássaros comam as sementes.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Em Maio ceifamos o feno
Paul Strand do livro "Un Paese"
e juntamos as cerejas das cerejeiras que nascem junto às casas. Quando era pequeno nunca percebi, como as pessoas que viviam nessas casas floridas de amarelo, cor-de-rosa e branco, pudessem ter problemas. Em Junho é a colheita do trigo, e ceifa-se o feno pela segunda vez.
Paul Strand do livro "Un Paese"
As carroças carregadas de molhos de feno até ao cimo, levam sempre uma criança no topo.
Paul Strand do livro "Un Paese"
As lavadeiras vão para o rio, para o Po, e procuram os bancos de areia para aí lavarem a roupa na água fresca e limpa. Depois é a vez das margens do Po ficarem cobertas com a roupa lavada. Em Julho enxertamos os rebentos da vinha. Regrassam as raparigas dos arrozais do Piemonte, para onde foram trabalhar,
Paul Strand do livro "Un Paese", "I went to Piemonte this year with my mama, who goes there to work as a rice-weeder, because my papa couldn't stay behind with me since he was alone. There in Piemonte I looked after the landlord's geese in the pasture"
Paul Strand do livro "Un Paese", "This year I went to Piemonte to work as a rice-weeder. I would like to get engaged, because I'm fifteen years old..."
mas chegam a tempo para as festas da aldeia, onde gastam parte do dinheiro que ganharam. Em Agosto estruma-se a terra, e espalha-se os novos rebentos da vinha. Colhe-se a beterraba, parte é vendida para as refinarias de açucar, a outra é usada na forragem do gado.
Paul Strand do livro "Un Paese", "I'm in the third grade. I like to read history but I don't want to study any more. In summer I like to go swimming and diving in the little channel..."
Em Setembro enchem-se os silos, corta-se a cana do açucar, colhe-se o milho, e lavra-se a terra,
Paul Strand do livro "Un Paese"
preparam-se as pipas do vinho, e prepara-se a vindima. “Let’s finish this business of the months and their labors” escreve Zavattini antes de entrarmos em Outubro. “Em Outubro acaba-se a vindima e nos lagares as uvas são pisadas. Prepara-se a terra para as sementeiras, com a ajuda dos bois da charrua e do arado.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Semeia-se o trigo, centeio e a cevada.
Paul Strand do livro "Un Paese", "...I'm sixty years old, a farmworker, but almost unemployed: I work an average of thirty days each year, partly in the sprig and partly in the summer when they cut the wheat, partly in the autumn for the grape harvest"
Em Luzzara, nesta pequena aldeia, Outubro é o mês onde se encontra sempre no chão bagos de uvas e é também o mês que inesperadamente surgem os nevoeiros, as margens do Po deixam-se de ver. Ao fim da tarde a aldeia parece deserta, mas os cafés estão cheios de gente. Em Novembro apara-se e podam-se as vinhas.
Paul Strand do livro "Un Paese"
Retira-se a vinha arruinada pela peste e planta-se uma nova. No meio do mês a ceifa do feno está acabada e deixa-se de mugir as vacas. O nevoeiro torna-se intenso e os aldeões ficam em casa. É o mês de Santa Lucia, a santa da terra. Em Dezembro decanta-se o vinho, reparam-se as carroças e é a matança do porco. As salsichas da minha aldeia são as melhores do mundo, mas não se comercializam. Em Dezembro neva, e as águas do Po gelam.
Paul Strand do livro "Un Paese", "We sink the large winter boats because they stay better preserved that way, otherwise the ice breaks them apart..."

Há séculos que em cada mês do ano se repetem as tarefas rurais.

Estamos em Outubro e as árvores de folha caduca estão ainda cheias de folhas, e nós na cidade ainda andamos vestidos com a roupa de Verão, pois parece que Outubro é Julho.

Ler mais...