domingo, fevereiro 10, 2008

Será a fotografia perversa? ( II )

“Porque hão-de ter hoje os velhos sempre razão contra os jovens, quando o amanhã dá sempre razão aos jovens contra os velhos?” José Ortega y Gasset.

Como dissemos no post anterior, Baudelaire via na mecânica fotográfica, um mal que conduziria ao empobrecimento do génio artístico. Baudelaire criticou ferozmente a fotografia porque a receava. No entanto, o mesmo Baudelaire deixou-se fotografar pelo seu amigo Nadar e acabou a gostar dos seus retratos...
Nadar, Charles Baudelaire, 1856-58

Se na época de Baudelaire a arte não podia ser mecânica, porque era mais confessional, autobiográfica - na lírica procuraram os amores e as dores do homem que palpitavam por trás do poeta - hoje, o prazer das antigas formas monumentais da alma descritas nos romances e poesias esgotou-se, pois chega sempre um dia que a magnífica pedreira acaba, e é então chegada a hora de uma nova sensibilidade ser capaz de detectar novas pedreiras. O homem, num esforço constante de alargamento das suas fronteiras, ajusta o seu aparelho perceptivo e procura novas fontes. Hoje, é no mundo conceptual, ou talvez até melhor dito, no mundo da subjectividade perceptual, que o homem encontra a sua nova pedreira.

Olhemos para a série, “nowhere near”, 1999, de Uta Barth:
Uta Barth, nowhere near (nw 17), 1999
Uta Barth, nowhere near (nw 11), 1999
Uta Barth, nowhere near (nw 9), 1999

Trata-se de uma questão de óptica de extrema simplicidade. Para vermos um objecto, temos de ajustar de certa maneira o nosso aparelho ocular. Se o nosso ajustamento visual for inadequado, não veremos o objecto ou vê-lo-emos mal. Imagine o leitor que está a olhar para o jardim, através do vidro da janela da casa de Barth. Os nossos olhos ajustar-se-ão de maneira a que o raio de visão penetre o vidro, sem nele se deter, e apreenda as àrvores. Como o alvo da visão é o jardim e é sobre ele que se projecta o raio visual, não vemos o vidro, o nosso olhar atravessa-o, sem que dele nos apercebamos. Quanto mais puro for o vidro, menos o veremos. Mas, em seguida, fazendo um esforço, podemos distrair-nos do jardim e, restringindo o raio ocular, detê-lo no vidro.
Uta Barth, nowhere near, (nw 10), 1999
Então o jardim desaparece dos nossos olhos e dele vemos apenas algumas massas de cor confusas que parecem coladas ao vidro. Ver o jardim e ver o vidro da janela são duas percepções incompatíveis: uma excluiu a outra e cada uma delas requer um ajustamento ocular diferente. Barth põe em relevo as leis da organização que regem a nossa percepção, enunciadas pela psicologia da Gestalt. Entre figura e fundo, janela e jardim, a diferença entre visão próxima e visão distante. Dois modos distintos de olhar, dois pontos de vista, que se opõem ao modelo clássico, o do ponto de vista único da perspectiva geométrica renascentista. Barth considera que a fotografia é um meio que serve para agudizar a nossa percepção. Onde acaba a imagem e começa a percepção?

Ao olhar para uma fotografia não é o homem capaz de deixar as distorções e agudizar as percepções? Não foi a partir das aberrações ópticas dadas pela máquina fotográfica que Picasso se inspirou para dar movimento às suas figuras?
Pablo Picasso, Au bord de la mer, 1920

Para os artistas da Bauhaus, Johannes Itten, Josef Albers,...a fotografia serviu de meio para ilustrar as novas leis gestaltistas.
Johannes Itten, Berlin, 1929
Josef Albers, Hanging Clothes
Josef Albers, Birds
Será a fotografia afinal perversa, como refere Thomas Bernhard? Será que a fotografia é culpada de tornar a Natureza em algo perversamente grotesco? Ou será que a fotografia serve de desculpa à perversidade do homem actual?

Com Thomas Bernhard regressemos ao último post, e tentemos dar resposta à questão aí colocada: “Mas quando é que se dá a verdadeira ruptura com o modelo da Renascença?”
Jonathan Crary, em “L’art de L’observateur: Vision et modernité au XIX siècle”, analisa os fenómenos, que no início do século XIX, tiveram um papel crucial na visão actual e que produziram um novo tipo de observador. Para ele a ruptura do modelo clássico de visão não se limita a uma mera mudança de aspecto das imagens nem a uma mudança dos códigos de representação. Ao contrário do que referem a maioria das histórias de arte, que apontam Édouard Manet, o impressionismo e pós-impressionismo, como a origem da arte e cultura moderna, Crary recua uns 40 anos, 1810-30, que precedem mesmo o aparecimento da fotografia (1839), e aponta a psicologia e a fisiologia como as causas da grande ruptura do modelo clássico. Trata-se da passagem da óptica geométrica, dos séculos XVII e XVIII, para uma óptica psicofisiológica que domina os primeiros anos do século XIX.
Exame do Olho, desenho de Nicolas- Henri Jacob, Tratado de anatomia do homem, 1839
Estuda-se a persistência das imagens retinianas, a visão periférica e binocular, os patamares de atenção, com o objectivo de determinar normas e parâmetros quantificáveis. David Brewster, um dos inventores dos aparelhos esterioscópicos, Joseph Plateau, o primeiro a criar os aparelhos de ilusão de uma imagem em movimento, o fisiologista Gustav Fechner e Goethe, com a sua obra “A teoria das cores”, 1810, na qual distingue cores “físicas”, “químicas” e “fisiológicas”,
Goethe, 1797
todos os quatro analisaram, na mesma época, os fenómenos das imagens residuais e da persistência das sensações retinianas. Precedendo os gestaltistas, que para enunciarem as leis das estruturas perceptivas globais submeteram à experimentação não matéria mas os fenómenos psíquicos do homem, Fechner, quantifica as sensações a partir dos estímulos que as produzem, e a sua conhecida lei - a lei de Fechner - a primeira a quantificar uma grandeza subjectiva. Ele descobre por exemplo que a intensidade de uma sensação de luz não aumenta tão rápidamente com a intensidade do estímulo físico, concluindo que a relação não é proporcional. Todos estragaram a vista ao olhar para a luz solar, e Plateau acabou mesmo por cegar. Joseph William Turner, o pintor e amigo de Brewster, Plateau e Fechner, é um dos primeiros a rejeitar a perspectiva geométrica. O seu interesse pelos processos psicofisiológicos da vista levam-no por outros caminhos. E na sua obra são vários os exemplos. No seu quadro, “Regulus”,
Joseph William Turner, Regulus, 1828
que retoma o nome do general romano, que foi castigado e preso pelos cartagineses por não saber negociar junto de Roma a libertação dos prisioneiros, é-lhe destinado um castigo terrível, tiram-lhe as pálpebras e obrigam-no a olhar para o sol até cegar. Ao olhar para o quadro não vemos a figura de Regulus, antes um sol que se funde com o olhar, o que cegará Regulus. De Goethe, que lê com entusiamo o seu livro, Turner presta-lhe homenagem em “Luz e cor (a teoria de Goethe)”, 1843.
Joseph William Turner, Lumière et Couleur, (La théorie de Goethe) - Le Lendemain du déluge, 1843
No quadro as cores parecem girar formando um vortex central, formando uma verdadeira estrutura hemisférica na qual se fundem os raios solares, a superfície do olho e o conjunto de imagens consecutivas produzidas sobre a retina pela brutalidade do clarão.
Mais tarde, 1912, é esta incandescência órfica, que Frantisek Kupka pinta em “Estudos dos discos de Newton”, onde quatro discos de cor, reconstituem, pela persistência retiniana, um branco luminescente.
Frantisek Kupka, Estudos para os discos de Newton, 1912
Kupka, consagra também numerosas análises ao funcionamento do olho.
Frantisek Kupka, modelos de fundo do olho representando diferentes estados fisiológicos, 1923
Fascinado pela descoberta dos raios X de Roentgen,
Wilhelm Röntgen, O primeiro Raio- X Humano, 1896
escrutina o interior das coisas, em particular o centro do olho, o que dá acesso ao mundo.
Frantisek Kupka, Fantasia fisiológica

Larionov, o pintor russo, fica fascinado com as aguarelas de Turner, e em 1906 escreve o seguinte: “ fiquei definitivamente convencido que a pintura não tem necessidade de imitar as formas reais. A partir deste momento, cada dia, desde que acordo, ressoam na minha cabeça as palavras de uma pintura não figurativa”.
Mikhail Larionov, Linhas de raios, 1912

Os pintores das gerações seguintes, devem a sua modernidade a estes homens da ciência. A primeira geração de artistas da Bauhaus, Vassily Kandinsky, Paul Klee, Johannes Itten, consideram Goethe como o grande emancipador da cor pura. Para Robert Delaunay, como o fora para Turner, o sol vai ser a essência da sua pintura. Sónia, a mulher, confirma nas suas memórias esta abordagem puramente óptica do marido “ Robert voulait regarder en face le soleil de midi, le disque absolu (...). Il se forçait à le fixer jusqu’à l’éblouissement. Il baissait les paupières et se concentrait sur les réactions rétiniennes. De retour à la maison, ce qu’il cherchait à jeter sur la toile, c’était ce qu’il avait vu à la fois les yeux fermés; tous les contrastes que sa rétine avait enregistrés”.
Robert Delaunay, Formes Circulaires, Soleil nº2, 1912-13

Regressemos ao século XXI, a Uta Barth e ao seu trabalho que realiza em 2002, “white blind (bright red)”. Agora o trabalho restringe-se ao exterior, “ It’s just the tree outside of my window! It’s no longer even the window; it’s just the tree”.
Uta Barth, da série white blind (bright red), 2002
Agora são os fenómenos da fadiga ocular que Barth explora e quer revelar. Utilizando séries repetitivas da mesma árvore, interrompe com painéis coloridos: amarelo, vermelho, branco....A partir das experiências feitas por psicólogos, que depois de submeterem sujeitos a longas exposições de um mesmo estímulo verificaram que após uma interrupção, o sujeito continua, mesmo já sem o estímulo a ver a mesma imagem, Barth traduz estas experiências, nestas imagens brancas, amarelas, que para além da cor reproduzem em negativo as imagens das àrvores. Em galerias, este trabalho é exposto como se um horizonte de imagens se tratasse.
Exposição Uta Barth, white blind (bright red), 2002, ACME, Los Angeles

A origem da vida é um mistério, o futuro do homem, no extremo oposto, outro mistério, no meio intercalam-se os enigmas da vida que o homem incessantemente procura desvendar.
Nos anos 50 do século XX, Miller tentou decifrar a origem da vida, mas faltou-lhe decifrar o passo essencial, a ligação entre a matéria inerte e a matéria viva.
Mas no próprio momento em que se descobriam as unidades mais simples da matéria e da vida, a ciência progrediu, e o modelo analógico, deixou de servir, porque era incompreensível a natureza estudada de forma aditiva e linear. À psicologia clássica, que estudou a percepção pela análise das sensações elementares, sobrepôs-se a psicologia da Gestalt, ou psicologia da forma, que veio propor uma nova abordagem. Para os gestaltistas não havia fenómenos psíquicos nem tão pouco processos cerebrais independentes e transferiram o método científico no plano da psicologia. O desafio foi grande, pois bastava mudar um só elemento para modificar a estrutura global. Hoje só com a ajuda dos computadores o homem consegue abordar a complexidade organizada, e do modelo analógico, possível ao homem, passou para o modelo sistémico, só possível com a ajuda dos computadores. Os computadores são hoje os novos laboratórios onde se estuda a vida e os fenómenos naturais e onde é possível a simulação de experiências utilizando universos artificiais. A ciência evoluiu da química
Abelardo Morell, Construção com vidro de laboratório, 2004
para a electrónica,
Luisa Ferreira, Visualização de DNA num gel utilizando luz fluorescente, CEBIP, Faculdade de Medicina, UTL, 27 de Junho 2003
a fotografia, também ela, evoluiu da química, dos sais de prata, para a electrónica, os pixéis. Julgou o homem que a fotografia morrera, tão grande foi a sua evolução. A fotografia precisa de mudança para sobreviver, uma repetição escrupulosa e infalível seria o seu fim. A fotografia é hoje electrónica e não morreu, modificou-se, como a ciência e o próprio homem.

Perante uma enorme folha em branco deitada no chão Jackson Pollock, com um pincel embebido em tinta preta cobre progressivamente, primeiro, com movimentos lentos, a superfície com diversos traços sinuosos e descontínuos. O pincel nunca toca na folha. Depois é a vez da tinta branca cair num ritmo mais acelerado nas linhas pretas da superficie da folha. O caos aparente dos quadros de Pollack, seguem a lei da boa forma ou da “pragnância” das formas enunciadas pelos gestaltistas, pois ao olhá-los agrada-nos o caos aparente, mas agora, são os universos artificiais criados no computador que nos explicam as leis da organização que regem a nossa percepção, e que nos levam a entender o prazer de olhar para o caos aparente.
Hans Namut, Jackson Pollock a trabalhar, 1950
Jackson Pollock, Autumn Rhythm, 1950

Da óptica geométrica da Renascença, passou-se para a óptica psicofisológica do século XIX. Hoje tentamos conhecer o mundo e o homem através de uma outra óptica, a dos universos artificiais.

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quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Será a fotografia perversa? (I)

Há dias tive a oportunidade de espreitar pelos dois orifícios de uma “peepshow”, e ver em três dimensões um interior burguês de uma casa holandesa.
Samuel van Hoogstraten, "peepshow", c. 1655-60. The National Gallery.
Estas caixas de perspectiva suscitaram uma grande curiosidade popular e eram muito vulgares no século XVII, hoje só existem seis no mundo.

A geometria euclidiana com a sua linha de fuga é anterior à criação do espaço em perspectiva da Renascença. A inovação de Brunelleschi, em 1420, segundo Hubert Damisch em “L’origine de la perspective”, está na interpretação arquitectónica da geometria de Euclides.
Filippo Brunelleschi, interior da igreja San Lorenzo, 1419-60, Florença
A perspectiva surge associada não à pintura mas à construção, mais concretamente à construção das cidades ideais sonhadas pelo homem do quatroccento.
Francesco Giorgio Martini, The Ideal City, c. 1480
Pouco depois é Alberti a interpretá-la na pintura, e neste novo espaço geométrico o mundo é representado no interior de um cubo imaginário. O pintor e fotógrafo Jan Dibbets, interessa-se, desde a década de 1960, em questionar as percepções visuais da perspectiva geométrica e, através da fotografia, testemunha as transformações.
Jan Dibbets, Perspective Correction - My Studio I, 1969
Quadrado ou trapézio?
Tudo depende do ponto de vista. Dibbets desenhou um trapézio, é esta a forma geométrica desenhada na parede, mas o ponto de vista escolhido por Dibbets, transforma o trapézio em quadrado, transformação que nos causa desconforto, pois o quadrado parece sair da parede. O nosso cérebro não gosta de discontinuidades e neste caso não sabe como agir para processar a ilusão criada pela máquina fotográfica. Não consegue extrapolar ou estabelecer relações, mesmo que falsas, para repor o equilibrio a que estamos habituados, i.e, a perspectiva geométrica.
Ao lado do “peepshow” está este quadro de Pieter Saenredam,
Pieter Saenredam, The interior of the Grote Kerk at Haarlem, 1636-7. The National Gallery.
pintor que Dibbets homenageou em 2003, ao utilizar nas suas fotografias a arquitectura como iconografia, como Saenredam havia feito em relação ao interior das igrejas, transgredindo a visão real e possibilitando um novo olhar sobre os espaços e o interior das mesmas igrejas, a partir de vistas insólitas obtidas e trabalhadas de acordo com múltiplos e diferentes pontos de vista.
Jan Dibbets, Saenredam-Zadkine II, 2003

Durante os séculos XVII e XVIII a câmara escura foi largamente utilizada pelos pintores, e se a personagem Griet, do filme, “A rapariga com o brinco de Pérola” se espanta quando olha para o interior da câmara escura e vê a imagem que Vermeer irá pintar, é porque, como todos nós sabemos hoje, não vemos segundo a geometria dada por estes instrumentos, e assim Griet também se espantou com a distorção do que viu.
Olhando para este quadro de Vermeer,
Johannes Vermeer (1632-1675).
percebe-se claramente o uso da câmara escura pela discrepância de escala das duas figuras. O nosso cérebro não reduz na mesma escala euclidiana os objectos ou pessoas que estão mais afastados. No sentido matemático a perspectiva está correcta, a imagem de um objecto reduz-se em metade com a duplicação da distância, é a optica geométrica e aplica-se tanto ao nosso olho como à máquina fotográfica. Mas a realidade é percepcionada de forma diferente. Nós não vemos o mundo de acordo com as dimensões ou formas das imagens retinianas e, neste ponto sai a geometria e entra a percepção. O nosso cérebro compensa as mudanças na imagem retiniana com mudanças na distância visual. Tomar a perspectiva geométrica por realidade é idealizar – falsificar ingenuamente, porque uma mimésis, também ela fictícia.
Contudo qualquer história da fotografia trás sempre reproduzida uma câmara escura, subentendendo-se uma filiação directa entre esta e a imagem de uma máquina fotográfica.

Thomas Bernhard não se cança de repetir “ Tudo é artificial, tudo é artifício. A natureza já não existe. Nós continuamos a partir ainda da observação da natureza, quando afinal há já muito tempo que só devíamos partir da artificialidade (...) tudo é tão caótico. Tão falso. Tão infeliz”, pois para Bernhard “Fotografar é um vício abjecto, que a pouco e pouco se vai apoderando de toda a humanidade, porque esta não está só apaixonada, mas também doida pela distorção e pela perversidade e, de tanto fotografar, toma efectivamente, com o tempo, o mundo distrocido e perverso pelo único que é verdadeiro. Aqueles que fotografam cometem um dos crimes mais abjectos que é possível cometer, tornando a natureza, nas suas fotografias, em algo perversamente grotesco”.

A fotografia nasceu com um pecado original – o de ser feita por uma máquina. Baudelaire que percebia os cruzamentos das artes e a correspondência dos sentidos como ninguém, não apreciou a fotografia, viu nela, uma tecnologia, uma má contaminação para a arte. Para ele todos os progressos industriais conduziam ao empobrecimento do génio artístico, e a fotografia não ficava de fora. Quanto muito a fotografia poderia ser a “serva das ciências e das artes”.

A história da arte coincide com uma história da percepção, e a evolução das formas artísticas ao longo do tempo constituem as mutações históricas da visão. Mas quando é que se dá a verdadeira ruptura com o modelo da Renascença?

Será que a fotografia é perversa? (continua).

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segunda-feira, fevereiro 04, 2008

O mistério das malas de Robert Capa

Robert Capa em Espanha, 1936, fotografia atribuída a Gerda Taro
Há uns anos em Paris, o tempo de espera para ver a exposição “Matisse/Picasso” era de duas horas, não muito longe do Grand Palais, na Biblioteca Nacional, duas horas era o tempo para quem queria ver a exposição “Robert Capa”. Capa o fotógrafo, Picasso o pintor, hoje internacionalmente conhecidos, deixaram para a história o símbolo do horror da guerra civil espanhola. Capa com “The Falling soldier”, tirada em 1936 perto de Córdova,
Robert Capa, "The Falling soldier", Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro de 1936
Picasso com a sua “Guernica” pintada no ano de 1937.
Picasso, Guernica, 1937

Em Julho de 1936 uma sangrenta guerra civil eclodia em Espanha. Republicanos e Nacionalistas num combate violento dividem o país, e no seio de muitas famílias, republicanos e nacionalistas olham-se não como parentes mas com ódio de morte.

Na semana que passou, o New York Times e dois periódicos espanhois noticiavam a recuperação, pela insistência da International Center of Photography (veja aqui fotografias de uma recente exposição), de três malas
com milhares de negativos da guerra civil espanhola atribuídos a Robert Capa, Gerda Taro e algumas de David Seymour.

Não é a primeira vez que malas com negativos e fotografias de Capa são alvo de notícia e sempre que se descobrem misteriosas malas com fotografias e negativos atribuídos a Capa, os jornais deliciam-se em duvidar sobre a veracidade da fotografia “The Falling soldier”. A notícia agora divulgada no New York Times repete a história: “será que entre estes milhares de negativos estará o negativo de “The Falling soldier”? Será que se pode pôr um ponto final nesta história?” Mas acrescentam agora uma outra dúvida, “será que “The Falling soldier” seja de Taro e não de Capa?” Especulações que excitam muita gente.

O húngaro e judeu, Robert Capa, deixa Paris quando as tropas da Wehrmacht se aproximam da cidade. Para trás deixa o seu estúdio mas, entretanto, enche também uma mala com negativos, quase todos da guerra civil espanhola, e entrega-a a um amigo, seu conterrâneo e também judeu. O amigo, hoje a viver sob o anonimato no México, vai para Bordéus à espera de um transatlântico mas, com receio de também ser apanhado, entrega a mala a um Chileno, também amigo de Capa, que promete guardá-la num local seguro em Nice ou Marselha. Esta recambolesca história li-a há muitos anos, 1983, na revista American Photographer. A revista voltava à história das malas de Capa no ano em que a revista francesa Photo publicava várias fotografias suas da guerra civil espanhola que um fotógrafo da Magnum, Bernard Matussiére,
Fotografia publicada no American Photography, Outubro 1983
encontrara no sotão da sua casa. A primeira página do artigo da Photo era ilustrada com esta fotografia fantástica de Capa tirada em Barcelona, cidade que no final da guerra sofreria terríveis raids aéreos:
Robert Capa, Barcelona, Agosto 1936
Capa fotografou Barcelona ainda ocupada pelos republicanos
Robert Capa, Barcelona, 13 de Janeiro, 1939
Robert Capa, Barcelona, Janeiro, 1939
_ cairia nas mãos dos nacionalistas pouco tempo depois, a 26 de Janeiro de 1939.
Será que a mala afinal seguiu no transatlântico para o México, como agora parece comprovar a história divulgada pelo New York Times?

Em 1983 não era contudo a primeira vez que as malas de Capa vinham à baila, pois nos finais dos anos 70, uma mala com 97 fotografias de Capa, da guerra civil espanhola era encontrada no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suécia. A mala pertencera ao ex-Primeiro Ministro do governo Republicano, Juan Negrín, que substituira Largo Caballero em Maio de 1937, quando este se demitiu recusando a alinhar com os comunistas. Hoje estas 97 fotografias pertencem ao Arquivo Histórico Nacional de Salamanca.
Robert Capa, Farmácia Globo, Madrid, 1937, do Arquivo Histórico Nacional de Salamanca

Se dias depois da tomada de Barcelona as tropas de Franco chegavam à fronteira francesa, levando o Presidente Azaña e o General Vicente Rojo a desistir, Negrín julgou possível prolongar a resistência e, em 4 de Março, Madrid era ainda alvo de combates violentes entre as tropas do Coronel Cascado e as tropas de Negrín.
Robert Capa, Madrid, Novembro-Dezembro 1936
A 28 de Março de 1939, Madrid é tomada pelos nacionalistas e, dois dias depois, a 1 de Abril, Franco proclama a vitória. A guerra acabava.
Capa terminou a reportagem da guerra civil a fotografar os exilados no campo de refugiados perto de Perpignan.
Robert Capa, Argelès-sur-Mer, França, Março 1939
Robert Capa, Argelès-sur-mer, França, Março, 1939

Foi a revista francesa “VU”, dirigida por Lucien Vogel, que a 23 de Setembro de 1936, publicava pela primeira vez “The Falling soldier”.
Passados uns meses, a 12 de Julho de 1937, é a vez da revista Life publicar a mesma fotografia. E enquanto durou, jornais e revistas de todo o mundo ilustravam a guerra com as fotografias de Capa. Em Dezembro de 1938 a prestigiada revista inglesa Picture Post dedicava 11 páginas com fotografias de Capa e proclamava-o “The greatest War Photographer in the world”.
Durante anos ninguém duvidou se a fotografia do soldado republicano a cair, atingido por uma bala, era ou não encenada. Mas a inveja é terrível e na década de 70, jornalistas ingleses baseados em informações de um fotojornalista do London Daily Express, O’Dowd Gallagher, que também cobrira a guerra civil, vinham dizer que a fotografia de Capa era encenada. Em 1985, no Festival Internacional de Fotografia de Arles, circulava a notícia que o soldado de “The Falling soldier”, estava vivo e residia na Venuzuela. Richard Whelan, que em 1985 publicava a biografia de Capa, tenta repor a verdade. Durante anos investiga a vida do fotógrafo e concluiu que o soldado da célebre fotografia era Frederico Borell García, militante da Confederación Nacional del trabajo, CNT, uma poderosa organização anarquista.
Robert Capa, Untitled, Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro, 1936
A família comprova que Frederico Garcia morrera em combate em Cerro Muriano no dia 5 de Setembro de 1936. Os negativos dessa reportagem são enviados por Capa para o seu assistente, Csiki Weiss, que confirma a Whelan que “The Falling soldier” seguia no conjunto de outros negativos desse mesmo dia.
Robert Capa, sequência, Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro, 1936
“Era normal nesse tempo cortarmos os negativos”, diz Weiss. Em relação a Gallagher, Whelan concluiu que este só conhecera Capa anos mais tarde, já no final da guerra. Mas para refutar definitivamente tão absurda sugestão, Whelan pede a um perito em homicídios, Robert L. Franks, para analisar a fotografia. Franks concluiu que seria impossível alguém encenar tal fotografia, pois a mão esquerda, que mal se vê debaixo da perna, mostra que a mão está praticamente fechada, “se Garcia estivesse a encenar, a mão estaria aberta para amparar a queda”, diz Franks.

As conclusões de Whelan, que morreu no ano passado, parecem não convencer os jornalistas que insistem mais uma vez na dúvida.

Foi Robert Capa que teve a ideia de criar a agência Magnum, e com mais quatro colegas, em 1946, surgia a ainda hoje mítica agência. Num 4º andar, no nº 125 da rue du Faubourg Saint-Honoré, o local do escritório em Paris. Mas era no Bistrot da esquina, dessa mesma rua, que Capa preferia reunir os membros, onde com eles planeava as viagens. Viajar, cobrir os acontecimentos do mundo era o seu projecto. “If your pictures aren’t good enough, you’re not close enough”, a máxima de Capa. Para Capa, fazer reportagens para a Life aborreciam-no, pois esse homem, enérgico e cheio de vitalidade, vivia para mostrar ao mundo as guerras que o assolavam. Era o seu modo de vida. A 25 de Maio 1954 morreria, na Indochina, desfeito ao pisar inadvertidamente uma mina. Enquanto viveu, nunca recuperou o desgosto da morte da sua amada, Gerda Taro, que morreria na guerra civil espanhola. Disse mais tarde que fotografara a guerra nas trincheiras de Cerro Muriano. Negaria Capa que a fotografia “The Falling soldier” era de Gerda? E será que Capa, o fotógrafo que morreria pela guerra, capaz de encenar uma fotografia de guerra?. Não tenho dúvidas em dizer que Frederico Garcia morreu e que Capa, na trincheira, tirava sem o saber, o momento crucial da morte desse militante.

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