terça-feira, março 10, 2009

A distância entre a ideia e o real

Quelques demandes m’avaient été faites de me prêter à un portrait documentaire mais allais-je déballer mes souvenirs, des objets et des photos pour des inconnus, qui en feraient le tri selon leur goût (et cela eût été normal) », conta Agnès Varda, que para não deixar a escolha das suas recordações, objectos e fotografias nas mãos de desconhecidos, realiza « Les plages d’Agnès », o seu último filme, um documentário auto biográfico que nos conduz às praias que marcaram a sua vida.



Das fotografias de infância retiradas do álbum de família, que enterra na areia como se a praia fosse uma enorme moldura, às reportagens fotográficas que fez na China de Mao e na Cuba de Fidel e que mistura com extractos dos seus filmes, às fotografias do Festival d’Avignon e da “troupe” de Jean Vilar, que tanto venera, e do qual fala como se ainda vivesse, Varda partilha com o espectador a sua vida, o seu mundo, a Rue Daguerre em Paris, o universo do seu Ciné-Tamaris, onde vive, escreve, monta e produz os seus filmes.

Em Paris, onde agora passa o filme de Varda, o Jeu de Paume mostra “Operations”, uma exposição monográfica de Sophie Ristelhueber. Tal como Varda, que entra em cena, filmando-se a viver a sua vida, Ristelhueber entra em cena, filmando-se a observar o seu trabalho fotográfico.

“Fatigues” 2009, o filme com que termina a exposição, palmeiras bombardeadas e calcinadas que tirou na sua viagem ao Iraque, 2001,


Sophie Ristelhueber, Fatigues,2009, vídeo 6mn 20s

misturam-se com as fotografias da sua casa de família em Vulaines, 1989,


Sophie Ristelhueber, Fatigues,2009, vídeo 6mn 20s

num diálogo que Ristelhueber mantêm constante ao longo da exposição.

Um mesmo estilo parece pulsar na arte de Varda e Ristelhueber, mas será que esta surpreendente e misteriosa inspiração é de facto idêntica?

Na madrugada do dia 17 de Janeiro, 1991, uma frota de aviões dos Estados Unidos, França, Inglaterra, Arábia Saudita e Kuwait, seguiram em direcção ao Iraque. Os ataques aéreos, feitos com bombas inteligentes, de uma precisão nunca antes vista, marcavam o início de uma ofensiva que se designou por “Operação Tempestade no Deserto”.

Uns meses depois, em Outubro de 1991, Ristelhueber, “qui se présente bien comme une artiste et non comme une journaliste”, como sublinha um texto do catálogo, chega ao deserto do Kuwait - uma imagem aérea na revista Time,


Time, 25 de Fevereiro 1991

sobre a guerra que aí se desenrolava, desperta-lhe a atenção, pois sem o texto que a acompanhava, a imagem poderia ser interpretada como uma “abstracção de explosões negras sobre uma superfície cicatrizada”.

“Fait”, 1992, a série que resulta desta viagem, ocupa uma das salas maiores da exposição.


(Não se trata da exposição no Jeu de Paume, pois infelizmente aí não deixam fotografar)

Mais tarde, sobre esta mesma série, Ristelhueber diz o seguinte: ”Encontrei, uma colecção de objectos (…) que deveriam fazer parte da panóplia de um soldado. Diários, uma manta escocesa, que me fez lembrar as da minha infância (…) este duplo abandono do homem e dos seus objectos perturbou-me bastante. Estas “naturezas mortas”, levaram-me ao lado prosaico da guerra, mas ao mesmo tempo, todos estes objectos, agora sem uso, transformavam-se em abstracções”.

Ao olhar para o conjunto de fotografias de “Fait”, tiradas de pontos de vista diferentes, (terra, céu), a realidade parece quebrar-se.
Quererá Ristelhueber fotografar algo completamente diferente de uma guerra? Ou seja, quererá Ristelhuber fotografar algo que se pareça o menos possível com uma guerra mas que conserve o estritamente necessário para nos tornar possível assistirmos à sua metamorfose?
Ou quererá Ristelhueber deformar a realidade, quebrar o seu aspecto humano, pelo prazer estético?

Na parede em frente, uma ampliação, a preto e branco, de uma fotografia retirada de um álbum de família, (à semelhança de Varda), e uma fotografia a cores, tirada do ponto de vista do olhar de uma criança, a um dos quartos da casa onde passava as suas férias, são colocadas lado a lado.


(Não se trata da exposição no Jeu de Paume, pois infelizmente aí não deixam fotografar)

Penduradas, a uma distância mínima do chão, olhar para o diptico, requer, da parte do espectador, um ajustamento diferente do aparelho perceptivo, e o nosso olhar transforma-se no ponto de vista de uma criança.

Terá sido a manta escocesa que encontrou no Kuweit, que lhe fez lembrar a infância, a razão deste diálogo?

Ou será a transformação da perspectiva habitual de ambas as séries, a razão do diálogo?

Em 1992, novamente numa revista, a Newsweek, uma fotografia aérea de casas israelitas na Cisjordânia, servem novamente de ponto de partida para uma outra viajem.


Newsweek,6 de Julho de 1992

As casas pareceram-me um jogo de Lego (…), procurei um conceito sobre a separação entre Israelitas e Palestinianos. (…) Percorri a Cisjordânia, de Este a Oeste. Pensei fotografar o muro que separa os dois campos do conflito, mas acabei por encontrar, outros objectos mais simples”, conta Ristelhueber, sobre a série, WB, (West Bank), 2005, que ocupa uma outra sala da exposição.


Sophie Ristelhueber, WB #7, 2005


Sophie Ristelhueber, WB #11, 2005


Sophie Ristelhueber, WB #35, 2005

Passou-se de fotografar as coisas para fotografar as ideias – “procurei um conceito sobre a separação entre israelitas e palestinianos”, e as barreiras de pedra nas estradas, uma metáfora perfeita do muro. Mas acontece que entre a ideia e o real há sempre uma distância, e é essa distância que separa Varda de Ristelhueber.
Varda entra em cena filmando-se, não assiste à cena, antes, intervém nela, está dentro dela, faz parte dela, e nas praias que marcaram a sua vida, Varda funde-se na paisagem,


Fotograma do filme Les Plages d'Agnès, 2008

porque a vive, e entre a ideia e o real a distância torna-se mínima.
Ristelhueber entra em cena filmando-se a observar as suas obras, mas uma distância separa-a da verdadeira guerra. No terreno, contempla os vestígios do acontecimento, não o vive, contempla-o, todavia, com a preocupação de o registar e mostrar.


Sophie Ristelhueber, Fait #31, 1992

Por último, a cem mil léguas do acontecimento, o espectador na galeria, contempla imagens de objectos, monumentalmente destacados, que em breve serão enterrados na areia ou cobertos de vegetação, onde a distância entre a ideia e o real é levada ao extremo, pois cada um vê e interpreta o que lhe assalta à mente.

O mistério subsiste. Qual destas múltiplas realidades é a verdadeira?

4 comentários:

Anónimo disse...

tive a oportunidade de ir ao Jeu de Paume ver o trabalho de Agnés Varda e fiquei numa espécie de "loop", totalmente preso ao "Fatigues".

foi bom ter recordado a experiência ao ler este post

nelson d'aires

Anónimo disse...

perdão, não da Agnés Varda mas sim da Sophie Ristelhueber.

nelson

Madalena Lello disse...

Nelson, ao contrário de tantos outros museus, inclusivé o Louvre, que deixam fotografar sem flash, o Jeu de Paume, um centro de divulgação de imagem, não permite. É pena, pois o trabalho de Ristelhueber é também a montagem que ela faz, não só entre as fotografias da mesma série como o diálogo que estabelece com as outras séries.
Fatigues é de facto um trabalho fantástico, porque simultaneamente com as imagens vamos ouvindo as interrogações e as questões da própria artista. Tudo isto tão difícil de por em post...

kitato disse...

Uma grande respigadora (^_^)