No século XIX, século fecundo em invenções e descobertas, o barco a vapor, o substituto das embarcações à vela, revolucionaria o transporte marítimo. A máquina a vapor, conseguindo mover os barcos contra ventos, marés e correntes, reduzia o tempo e os custos da navegação. Com a previsibilidade da duração das viagens, surgiram os horários informando a hora da partida e de chegada dos navios. Esta nova possibilidade, a par com a fotografia, cujo invento acabava de ser divulgado, (1839), reuniram as condições para o florescimento de um novo negócio – as viagens em grupo. Se a invasão de Napoleão Bonaparte ao Egipto (em 1798), abriu a via aos arqueólogos que para lá se deslocaram no estudo das civilizações antigas, logo os grupos de Thomas Cook, o inventor da viagem organizada, (1868), não mais deram sossego às pirâmides que se encheram de “cooks” e “cookesses”, como lhes chamaram os franceses.
Émile Bechard, Subida à grande Pirâmide, Egipto, c. 1875
“Vivi a Istambul da minha infância como um lugar em dois tons, como a cor do chumbo, semiobscura, no estilo das fotografias a preto e branco; e é assim que me lembro da cidade”, escreve Orhan Pamuk, o Nobel da literatura, no seu último livro “Istambul – Memórias de uma cidade”, publicado este ano pela Editorial Presença. Ao longo das memórias, a gloriosa Istambul de outrora, que durante a infância, incêndio após incêndio, Pamuk viu desaparecer gradualmente, só lhe é agora acessível através dos escritos e das imagens que os viajantes ocidentais deixaram. “Para saber como seriam as ruas de Istambul em 1850 e como se vestiam as diversas categorias da população”, Pamuk olha para essas imagens simultaneamente assustadoras e atraentes,
Antonio Beato, Constantinopla, 1854
J.Pascal Sebah e Joaillier, Mercadores turcos, Constantinopla, c.1870
pois “com um sentimento de culpa, de humilhação e de inveja, reduzimos rapidamente a nada os últimos vestígios de uma grande cultura e de uma civilização de que não soubemos ser dignos herdeiros”.
No século XIX, século em que as viagens ao Oriente se tornaram uma moda, o itinerário do “Grand Tour”, traçado por Flaubert e Maxime Du Camp, na sua missão oficial (1849-51), começava no Egipto,
Albert Goupil, Egipto, 1869
atravessava a Palestina,
Albert Goupil, Acampamento junto ao Monte Sinai, 1868
Félix Bonfils, Mar Morto, Palestina,c.1875
Síria,
Félix Bonfils, Porto de Tripoli, Síria, c. 1875
Líbano,
Louis Vignes, arredores de Beirute, c. 1864
Louis Vignes, interior de um salão em Beirute, c. 1864
outrora domínios do Império Otomano, e terminava na Turquia. No século XIX, Istambul, a cidade do sultão, cujo Império agonizava com a delapidação territorial e o encurtamento das fronteiras, era a derradeira cidade oriental que os europeus visitavam antes de regressarem a casa.
Se no Egipto, (a primeira paragem do “Grand Tour”), os fotógrafos encantaram-se com a esfinge semi-enterrada nas areias do deserto
John Green, Esfínge, Egipto, 1854
e com a grandiosidade de uma civilização tão rica quanto misteriosa,
Maxime Du Camp, Kalabschen, 1850
Maxime Du Camp, Ibsamboul, Núbia, 1850
as grandes mesquitas monumentais,
James Robertson, Mesquita Ahmedieh,Cosntantinopla, 1854
os minaretes, os edifícios históricos,
James Robertson, Constantinopla, 1854
os imensos fontanários espalhados pela cidade
Antonio Beato, Fonte do Sultão Mahmoud, Constantinopla, 1854
James Robertson, Fonte Top Hané,Constantinopla, 1854
e os dois cemitérios com os seus ciprestes,
James Robertson, Grupo de turcos não muçulmanos num cemitério, c.1860
localizados bem no coração da cidade - locais escolhidos pelos não muçulmanos endinheirados para discutir as últimas novidades e exibirem os trajes vistosos,
James Robertson, homem turco no cemitério Scutari, 1860
não escaparam aos fotógrafos. Mas foi contudo Flaubert, quem redigiu as linhas mais sensíveis em relação aos cemitérios pois o primeiro a reparar no afundamento das pedras tumulares “que, com o tempo, acabam por se enterrar e se perder na terra, tal como a memória dos mortos que acabam por ser esquecidos”.
J.Pascal Sebah e Joaillier, cemitério turco,c.1870
Em nome da ocidentalização, os cemitérios foram deslocados para lugares assustadores cercados por altos muros que mais parecem prisões, sem ciprestes, sem árvores e sem horizonte.
Hoje, no nosso século, na Istambul de Pamuk, “as pessoas limitam-se a viver no meio desses vestígios históricos, lembrando aos mais sensíveis, que a força e a riqueza passadas desapareceram…As fontes centenárias, agora transformadas em montes de mármore com as torneiras arrancadas, e enterradas em toneladas de betão, rebaixadas ao nível das ruas por causa das sucessivas camadas de asfalto – quando dantes se subia para a fonte por um lanço de escadas de pedra, fazem lembrar os vestígios de um tempo glorioso”.
J.Pascal Sebah e Joaillier, Fonte d'Achmet III, Constantinopla,c.1870
Das sete maravilhas do mundo, pela primeira vez enumeradas num belo poema de Antipater de Sídon, em 140 a.C., resta apenas as Pirâmides de Gizé, todas as outras, os Jardins Suspensos da Babilónia, o Templo de Artemisa, a Estátua de Zeus, o Túmulo de Mausolo, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria, sossobraram às forças da natureza, destruídas por terramotos e fogos.
Para os istambulenses, a ocidentalização da República de Ataturk Kemal enterrou definitivamente a glória de Istambul, mas os escritos e as imagens dos viajantes ocidentais da época do “Grand Tour”, não deixam esquecer a Pamuk a gloriosa Istambul de outrora.
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terça-feira, dezembro 30, 2008
terça-feira, dezembro 23, 2008
"Chávena de Café" de Rita Barros
Esta chávena cheia de café
Rita Barros, Chávena de café, em exposição na galeria Pente 10
foi a escolhida para ilustrar o convite, que recebi por e-mail, para a inauguração de “Presença da Ausência” de Rita Barros, em exposição, até 10 de Janeiro, na galeria Pente 10.
Há dias recebi um outro e-mail a lembrar a dita exposição, mas desta vez ilustrado com uma cafeteira ao lume.
Rita Barros, Máquina de café, em exposição na galeria Pente 10
Primeiro serviu-se o café e só depois se ouviu o gorgolejar tão típico da água a subir na cafeteira italiana.
“As cores saltam das imagens”, escreve Jorge Calado no catálogo, e “só depois nos apercebemos das formas, objectos e dos seus fragmentos”.
Ao olhar para a fotografia, “Chávena de café”, (exposta no corredor da galeria mas a olhar para a sala de exposição), o pires com as suas folhas verdes, um fragmento que quase se mistura com as flores garridas da toalha, saltou-me primeiro à vista. Depois, e ainda antes das cores das flores, veio a chávena e o adivinhar da sua forma. Será em forma de vaso ou terá a forma cilíndrica igual ao serviço de café que sempre vi ser usado em casa dos meus pais? A perspectiva escolhida, a mesma com que Stephen Shore – um dos pioneiros da cor nos anos 70 - fotografava as suas refeições nas mesas de fórmica dos restaurantes de comida rápida nas suas viagens pela América, não nos ajuda a deslindar a forma da chávena…aliás fico mesmo sem saber se a “Chávena de café” de Rita Barros é exactamente igual ao serviço que eu sempre conheci. Só depois, e muito depois, saltaram à vista as cores da tão florida toalha, que tal como as mesas de fórmica de Shore pode ser limpa com um simples pano húmido.
A cafeteira, pelo contrário, é fotografada de um ângulo que a revela tal qual é: resistente, sem disfarçar a idade que já tem, sempre pronta a servir e a resistir à belíssima chama azul do gás. A caçarola do leite, lá mais atrás, mesmo sem o azul a iluminá-la, não passa desapercebida em cima do velho fogão de esmalte branco, assim como os azulejos de bonecos da bancada do lava-loiças.
De objecto em objecto, do televisor à Lee Friedlander
Rita Barros, TV, em exposição na galeria Pente 10
à geometria que se vislumbra da janela do seu apartamento nova-iorquino,
Rita Barros, Cortina, em exposição na galeria Pente 10
(terá sido Stieglitz o primeiro a olhar e a registar as quadrículas geométricas dos edifícios, chaminés, janelas e da roupa a secar, nos telhados de Nova Iorque?), Rita Barros espevita-nos constantemente a memória.
No interior da sua casa,
Rita Barros, Santo António, em exposição na galeria Pente 10
presos nesse segredo das memórias da infância, que sentimos como uma cumplicidade, numa conivência partilhada, em laços que nos ligam a uma mesma cultura, julgamos por momentos estar em Portugal, mas a cidade de desconhecida arquitectura que vemos pela janela, passamos por estrangeiros por uma só noite.
Rita Barros, Prédio, em exposição na galeria Pente 10
Catarina Ferrer, a galerista, uma apaixonada pela fotografia, simpaticamente ofereceu-me, no final de ver a exposição, um café. Tirado em segundos por máquinas que perfuram cápsulas de cores garridas, que lembram as cores da exposição, em segundos varreram-se as memórias.
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Rita Barros, Chávena de café, em exposição na galeria Pente 10
foi a escolhida para ilustrar o convite, que recebi por e-mail, para a inauguração de “Presença da Ausência” de Rita Barros, em exposição, até 10 de Janeiro, na galeria Pente 10.
Há dias recebi um outro e-mail a lembrar a dita exposição, mas desta vez ilustrado com uma cafeteira ao lume.
Rita Barros, Máquina de café, em exposição na galeria Pente 10
Primeiro serviu-se o café e só depois se ouviu o gorgolejar tão típico da água a subir na cafeteira italiana.
“As cores saltam das imagens”, escreve Jorge Calado no catálogo, e “só depois nos apercebemos das formas, objectos e dos seus fragmentos”.
Ao olhar para a fotografia, “Chávena de café”, (exposta no corredor da galeria mas a olhar para a sala de exposição), o pires com as suas folhas verdes, um fragmento que quase se mistura com as flores garridas da toalha, saltou-me primeiro à vista. Depois, e ainda antes das cores das flores, veio a chávena e o adivinhar da sua forma. Será em forma de vaso ou terá a forma cilíndrica igual ao serviço de café que sempre vi ser usado em casa dos meus pais? A perspectiva escolhida, a mesma com que Stephen Shore – um dos pioneiros da cor nos anos 70 - fotografava as suas refeições nas mesas de fórmica dos restaurantes de comida rápida nas suas viagens pela América, não nos ajuda a deslindar a forma da chávena…aliás fico mesmo sem saber se a “Chávena de café” de Rita Barros é exactamente igual ao serviço que eu sempre conheci. Só depois, e muito depois, saltaram à vista as cores da tão florida toalha, que tal como as mesas de fórmica de Shore pode ser limpa com um simples pano húmido.
A cafeteira, pelo contrário, é fotografada de um ângulo que a revela tal qual é: resistente, sem disfarçar a idade que já tem, sempre pronta a servir e a resistir à belíssima chama azul do gás. A caçarola do leite, lá mais atrás, mesmo sem o azul a iluminá-la, não passa desapercebida em cima do velho fogão de esmalte branco, assim como os azulejos de bonecos da bancada do lava-loiças.
De objecto em objecto, do televisor à Lee Friedlander
Rita Barros, TV, em exposição na galeria Pente 10
à geometria que se vislumbra da janela do seu apartamento nova-iorquino,
Rita Barros, Cortina, em exposição na galeria Pente 10
(terá sido Stieglitz o primeiro a olhar e a registar as quadrículas geométricas dos edifícios, chaminés, janelas e da roupa a secar, nos telhados de Nova Iorque?), Rita Barros espevita-nos constantemente a memória.
No interior da sua casa,
Rita Barros, Santo António, em exposição na galeria Pente 10
presos nesse segredo das memórias da infância, que sentimos como uma cumplicidade, numa conivência partilhada, em laços que nos ligam a uma mesma cultura, julgamos por momentos estar em Portugal, mas a cidade de desconhecida arquitectura que vemos pela janela, passamos por estrangeiros por uma só noite.
Rita Barros, Prédio, em exposição na galeria Pente 10
Catarina Ferrer, a galerista, uma apaixonada pela fotografia, simpaticamente ofereceu-me, no final de ver a exposição, um café. Tirado em segundos por máquinas que perfuram cápsulas de cores garridas, que lembram as cores da exposição, em segundos varreram-se as memórias.
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Exposições/Livros/Colecções
sexta-feira, dezembro 19, 2008
A queda dos Impérios
Vicomte Aymard de Banville, c.1850
A América prepara-se para inundar o país com novas notas verdes. Para estimular o país, que agora se encontra em recessão, a equipa de Barack Obama vai lançar um plano no valor de 600 biliões de dólares. Há já elevadíssima dívida actual, os americanos vão aumentá-la ainda mais, e enquanto o dólar servir de moeda de reserva global, na América imprimem-se novas notas.
Finda a Primeira Guerra, o Império Britânico perdia a dianteira como potência mundial. Cheio de dívidas, bastavam os pagamentos dos juros para absorver metade do orçamento, o Império Britânico foi entregue - como disse um membro do Parlamento - à casa de penhores americana, e até hoje a América passou a dominar o mundo. Agora com uma dívida colossal, não estão os americanos a entregar-se à casa de penhores chinesa? No mundo de ontem, o colapso do dólar era impensável, no mundo de hoje tudo agora é possível...
Finda a Primeira Guerra, um outro Império, o otomano, um dos mais vastos, portentosos e duradouros da História, acabaria por se desmoronar em 1922 ao aliar-se à facção derrotada. Se o desaire da guerra 1914-18 explica o seu colapso final, durante o século XIX, os empréstimos à Europa, a quem os otomanos foram obrigados a recorrer para financiarem a guerra da Crimeia (1853-1856) contra à Rússia, é hoje apontado como a causa principal do seu desmoronamento. Inevitavelmente um empréstimo levou a outro, e em meados dos anos 1870, o Império otomano era incapaz de saldar a dívida aos seus credores europeus. Das negociações iniciadas em 1881, resultou a Administração da Dívida Pública Otomana. O sultão autorizava que um consórcio de credores estrangeiros supervisionasse grande parte da economia otomana e que os rendimentos do país fossem aplicados para saldar a dívida. A segurança da administração da dívida, gerida por europeus, acabou por atrair muitos outros investidores estrangeiros, que aplicaram o seu capital no sector portuário, ferroviário e público do Império, mas o preço a pagar foi elevado. O peso da dívida tornou-se incomportável, consumindo uma extraordinária fatia das receitas otomanas e o sultão viu a sua autoridade comprometida com o crescente controlo internacional - era o início do fim de um Império que durara mais de seiscentos anos.
O Império otomano, que nasceu por volta de 1300 na região ocidental da Ásia Menor, não muito longe da actual cidade de Istambul,
Abdullah Frères, Constantinopla, Ponte Sérail, c. 1870-80
Abdullah Frères, Constantinopla, Mesquita d'Ortakeni, c. 1870-80
acabou ao longo dos séculos por ocupar toda a região do mediterrâneo Oriental derrotando os reinos de Bizâncio, Sérvia, Bulgária, os principados da Anatólia e o sultanato mameluco do Egipto. No século XIX, quando a voga do “Grand Tour” pelo Oriente coincidia com a descoberta da fotografia, o Império perdera já grande parte da sua riqueza e supremacia.
«Au siècle de Louis XIV, on était helléniste, maintenant, on est orientaliste. Il y a un pas de fait. Jamais tant d’intelligences n’ont fouillé à la fois ce grand abîme de l’Asie...Le statu quo européen, déjà vermoulou et lézardé, craque du côté de Constantinople. Tout le continent penche à l’Orient », Victor Hugo, Les Orientales.
Como revela este relato de Victor Hugo, no século XIX, o Oriente, o país das “Mil e uma noites” tornou-se moda na Europa, os cafés em estilo otomano enchiam-se de frequentadores que bebiam café e fumavam cachimbos turcos. Desde a moda, das calças tufadas e sapatilhas de biqueira revirada, às marchas com sonoridades de címbalos, tambores, bombos…aos banhos turcos,
J. Pascal Sebah e Joaillier, Banho turco, c. 1870
a “turcomania” tornou-se na grande voga. No imaginário europeu, o Oriente suscitava um interesse e fascínio irresistível, visto como um antro de prazeres proibidos.
Zangaki, Grupo de mulheres num harem, c. 1870
E. Aubine, c.1881
Desde Lord Byron, ao romancista Pierre Loti a Lawrence da Arábia,
Zangaki,Dormedário descansando, c.1870
o Império Otomano era considerado como a terra dos sonhos, onde o exotismo e o erotismo predominava.
Em suma, os Otomanos enriqueceram de sobremaneira o imaginário europeu, e o “Grand Tour” pelo Oriente levou com ele muitos fotógrafos.
No próximo post, o “Grand Tour” do Oriente.
Louis de Clercq, Tarablous, Tripoli, "Voyage en Orient" Tomo I, 1859
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Política
terça-feira, dezembro 16, 2008
Nos interstícios das imagens
"Changeling", (2008), o novo filme de Clint Eastwood, foi estreia, quinta-feira passada, na Cinemateca, que este mês inicia um ciclo dedicado ao realizador e actor.
“Changeling”, lemos na folha de crítica distribuída na sala, “ tem uma paleta de cores quentes que servem uma cuidada reconstituição de época (Los Angeles, entre 1928 e 1935), porque essa reconstituição de época é especialmente fotogénica...”.
Em "Letters from Iwo Jima", (2006), Eastwood, utiliza a fotografia a preto e branco de Joe Rosenthal como ponto de partida para a sua narrativa. De uma imagem estática, como é a fotografia, Eastwood desliza para um outro mundo, um mundo, onde as fotografias são empurradas e atiradas incessantemente para outras vistas. No cinema, que nasceu da fotografia, há sempre um referente fotográfico, o seu material é indiscutivelmente fotográfico, mas no cinema, ao contrário de uma fotografia, que nos permite fechar os olhos e imaginar, o realizador é que nos conduz para o seu mundo imaginário.
Disse Jean-Luc Godard que: “A fotografia é verdade. O cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”, será verdade? Será que um filme é uma mera sucessão de fotogramas que originam movimento? Godard também disse que no cinema “eu sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam completamente realistas”.
Tudo isto a propósito de uma fotografia de Manel Armengol,
Manel Armengol, Espanha, Sant Adrià, Barcelona, 1978, Paisagem industrial e edifícios
em exposição no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, que ao vê-la me fez deslizar para outros mundos, mais especificamente para o universo de Michelangelo Antonioni.
“O Eclipse”, (1962), o último filme a preto e branco de Antonioni, é visto pela crítica como uma elegia sobre a inconstância do amor. O filme inicia com uma ruptura e avança com um novo encontro, onde contudo não há qualquer certeza que irrompa num novo amor. No meio da rua, no separador, Vittoria pára e replica “Aqui estou eu, a meio caminho”, e é a meio caminho que a relação parece ficar até ao fim.
Na fotografia de Manel Armengol, um separador de arbustos divide um bairro da cidade de Barcelona. A indústria poluente de um lado, a cidade dormitório do outro. O décor, que enquadra Vittoria em “O Eclipse”, revela os novos dormitórios que se constroem à volta da cidade - elementos de betão empilhados,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
tapumes,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
ruas desertas
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
despojadas de qualquer ser humano e de qualquer sentimento, tal como o bairro, que na fotografia de Armengol, dorme na obscuridade.
Em “O Eclipse”, o realizador conduz-nos e com ele passamos a divisória que separa as paisagens desumanizadas dos subúrbios, medidas a régua e esquadro, que na década de cinquenta se alargavam e cresciam em altura,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
para o ruído e excitação do centro da cidade, onde na Bolsa de Valores, Vittoria encontra o seu novo amante.
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
A narrativa, que avança por oposições, entre silêncio e ruído, geometria e desordem, são instantes de profecia, de um novo mundo materialista que se avizinha.
“Deserto Vermelho”, (1964), que se segue a “O Eclipse”, desenrola-se em Ravena, uma cidade industrial onde as fábricas petroquímicas dominam. É o primeiro filme a cores de Antonioni, onde no novo mundo moderno, em expansão económica, os fumos das chaminés fumegantes, já não se confundem com os céus cinzentos do preto e branco da fotografia.
Deserto Vermelho, Michelangelo Antonioni, 1964
Em “Deserto Vermelho”, o drama desenrola-se em torno da mesma Mónica Vitti, agora Giuliana. Vítima de um acidente de automóvel, não mais consegue recuperar a confiança em si mesmo e isola-se mesmo dos que lhe são mais próximos. No final do filme, Ugo, o filho de Giuliana, pergunta se a nuvem amarela dos produtos químicos lançado pela chaminé da fábrica, tal como as chaminés das fábricas do bairro de Barcelona, podem fazer mal aos pássaros que a atravessam. “Eles aprenderam que as nuvens são perigosas e, por isso, vão por outro caminho” responde-lhe a mãe.
Na imagem estática de Armengol, a geometria, a linha recta que divide o bairro de Barcelona, são pontos de partida para o universo narrativo do cineasta, que nos desliza e empurra para esse mundo moderno, um mundo onde os elos naturais dos seres humanos encontram um fim.
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
Afinal não será nos interstícios das imagens em movimento que se esconde o verdadeiro mistério do cinema?
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“Changeling”, lemos na folha de crítica distribuída na sala, “ tem uma paleta de cores quentes que servem uma cuidada reconstituição de época (Los Angeles, entre 1928 e 1935), porque essa reconstituição de época é especialmente fotogénica...”.
Em "Letters from Iwo Jima", (2006), Eastwood, utiliza a fotografia a preto e branco de Joe Rosenthal como ponto de partida para a sua narrativa. De uma imagem estática, como é a fotografia, Eastwood desliza para um outro mundo, um mundo, onde as fotografias são empurradas e atiradas incessantemente para outras vistas. No cinema, que nasceu da fotografia, há sempre um referente fotográfico, o seu material é indiscutivelmente fotográfico, mas no cinema, ao contrário de uma fotografia, que nos permite fechar os olhos e imaginar, o realizador é que nos conduz para o seu mundo imaginário.
Disse Jean-Luc Godard que: “A fotografia é verdade. O cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo”, será verdade? Será que um filme é uma mera sucessão de fotogramas que originam movimento? Godard também disse que no cinema “eu sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam completamente realistas”.
Tudo isto a propósito de uma fotografia de Manel Armengol,
Manel Armengol, Espanha, Sant Adrià, Barcelona, 1978, Paisagem industrial e edifícios
em exposição no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, que ao vê-la me fez deslizar para outros mundos, mais especificamente para o universo de Michelangelo Antonioni.
“O Eclipse”, (1962), o último filme a preto e branco de Antonioni, é visto pela crítica como uma elegia sobre a inconstância do amor. O filme inicia com uma ruptura e avança com um novo encontro, onde contudo não há qualquer certeza que irrompa num novo amor. No meio da rua, no separador, Vittoria pára e replica “Aqui estou eu, a meio caminho”, e é a meio caminho que a relação parece ficar até ao fim.
Na fotografia de Manel Armengol, um separador de arbustos divide um bairro da cidade de Barcelona. A indústria poluente de um lado, a cidade dormitório do outro. O décor, que enquadra Vittoria em “O Eclipse”, revela os novos dormitórios que se constroem à volta da cidade - elementos de betão empilhados,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
tapumes,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
ruas desertas
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
despojadas de qualquer ser humano e de qualquer sentimento, tal como o bairro, que na fotografia de Armengol, dorme na obscuridade.
Em “O Eclipse”, o realizador conduz-nos e com ele passamos a divisória que separa as paisagens desumanizadas dos subúrbios, medidas a régua e esquadro, que na década de cinquenta se alargavam e cresciam em altura,
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
para o ruído e excitação do centro da cidade, onde na Bolsa de Valores, Vittoria encontra o seu novo amante.
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
A narrativa, que avança por oposições, entre silêncio e ruído, geometria e desordem, são instantes de profecia, de um novo mundo materialista que se avizinha.
“Deserto Vermelho”, (1964), que se segue a “O Eclipse”, desenrola-se em Ravena, uma cidade industrial onde as fábricas petroquímicas dominam. É o primeiro filme a cores de Antonioni, onde no novo mundo moderno, em expansão económica, os fumos das chaminés fumegantes, já não se confundem com os céus cinzentos do preto e branco da fotografia.
Deserto Vermelho, Michelangelo Antonioni, 1964
Em “Deserto Vermelho”, o drama desenrola-se em torno da mesma Mónica Vitti, agora Giuliana. Vítima de um acidente de automóvel, não mais consegue recuperar a confiança em si mesmo e isola-se mesmo dos que lhe são mais próximos. No final do filme, Ugo, o filho de Giuliana, pergunta se a nuvem amarela dos produtos químicos lançado pela chaminé da fábrica, tal como as chaminés das fábricas do bairro de Barcelona, podem fazer mal aos pássaros que a atravessam. “Eles aprenderam que as nuvens são perigosas e, por isso, vão por outro caminho” responde-lhe a mãe.
Na imagem estática de Armengol, a geometria, a linha recta que divide o bairro de Barcelona, são pontos de partida para o universo narrativo do cineasta, que nos desliza e empurra para esse mundo moderno, um mundo onde os elos naturais dos seres humanos encontram um fim.
O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962
Afinal não será nos interstícios das imagens em movimento que se esconde o verdadeiro mistério do cinema?
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