sábado, maio 17, 2008

Belgrado, a capital da Sérvia

Até ao final do mês a Cinemateca apresenta um ciclo dedicado ao cinema Sérvio. “Jutro”, de Mladomir Djordjevic, que passou ontem, retrata o fim da Segunda Guerra Mundial na Sérvia, onde o poder ainda não se estabeleceu e os ajustes de contas ainda não terminaram. A importância da música no filme é central e a letra da canção “Jutro”, aurora em português, canta todas as guerras: “… Já não há a Rua das Flores/ Os Alemães varreram-nos do mapa…/Estamos frente a frente/ O que dizer à mãe/ À noiva, à irmã/… A paz feriu o coração/ A paz chegou, mas o Janko morreu/ A paz chegou, mas o dia foi assassinado/ A guerra continua até amanhã/ Mas a Aurora, onde está a Aurora?”.

Aurora, a hora que começa o dia, a hora no filme para executar os prisioneiros.

A guerra marca profundamente Djordjevic. No filme a morte está sempre presente, mas Djordjevic deixa-se levar pelo tempo, pela beleza de um dia, e em “Jutra”, mistura situações dramáticas, trágicas, de corpos enforcados, que contrastam com a beleza de um rio, numa espécie de liberdade inspirada apenas pelo prazer de existir: “filmo sempre em cenários naturais…Cada dia tenho a impressão de roubar alguma coisa aos rostos, à atmosfera. Também confio na sorte. É como se estivesse a pescar à beira de um rio”.
Filmado em 1967, impressionantes, porque o tempo parece ter estancado, são estas fotografias recentes que poderiam ter sido retiradas de “Jutra”: casas em Belgrado,

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado

e um rosto que procura por rostos desaparecidos,

Thomas Kern, Sérvia, 1993

“…A guerra continua até amanhã…”, como na canção.

No Sudeste da Europa, no final de 1944, as forças soviéticas controlavam já o Norte dos Balcãs. Em Maio de 1945, seria a vez da Hungria, Polónia e da Checoslováquia, e mais a sul, o Exército de Libertação Nacional jusgoslavo, e o Exército britânico, encontravam-se face a face em Trieste. A linha que dividiria a Europa pouco tempo depois, começava a ser traçada. Os territórios que formavam um arco, desde a Finlândia até à Jugoslávia, foram alinhados pelo sistema político da União Soviética. Para Estaline, esta barreira representava a segurança do seu país. Mas a Jugoslávia não se deixou modelar por Estaline. Em 1945, o partido a “Frente do Povo” de Josip Broz Tito ganhava as eleições e chegava ao poder, sem a intervenção soviética, ao contrário do que veio a acontecer nos outros países da Europa de Leste. Em 1947 o governo jugoslavo tinha um estatuto único e adoptara o modelo soviético da colectivização forçada da terra e as purgas aterrorizaram os não partidários. Se no início as relações entre Moscovo e Belgrado eram cordiais, rapidamente, Estaline exasperava-se com Tito, por não conseguir, a partir de Moscovo, dirigir a Jugoslávia. A ruptura, seria conhecida publicamente em Fevereiro de 1948, quando Tito pôs em prática a Federação Balcânica, Belgrado era acusada de conduzir uma política nacionalista.

Esquecer o tempo de guerra e as divisões, foi um desejo de Tito.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Junho 2006

Na sua Jugoslávia reunificada, constituída por seis repúblicas distintas dentro de um Estado federal, bem como de duas regiões autónomas (Voivodina e Kosovo), a geração do pós-guerra foi encorajada a pensar num país de unidade fraternal.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Agosto 2003

Nas gerações mais novas as diferenças atenuaram-se e os casamentos entre elementos de diferentes etnias tornaram-se cada vez mais frequentes. “Volvidos os anos de guerra, e visitando o país, não encontrei nenhuma situação em que tenha sentido em alguém a vontade da indómita vingança. As populações das diferentes Jugoslávias preparam-se para viver a melhor vida possível e nunca vi ninguém apontar dedos acusatórios”, escreve Carlos Miguel Fernandes, que foi várias vezes aos Balcãs (re)viver este passado.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Agosto 2003

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Agosto 2003

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Setembro, 2004

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Setembro, 2004

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Setembro, 2003

Em Belgrado, uma das cidades mais estimulantes que conheceu, o Zemun, subúrbio histórico e elegante da cidade na margem do Danúbio, fazem-lhe lembrar paragens mais orientais e mais exóticas.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Zemun, Junho 2006

Com a morte de Tito, 1980, Slobodan Milosevic, no vácuo político que se seguiu, preparou a sua ascensão ao poder, e na sua ânsia de dominar, utilizou o nacionalismo como arma política, em 86, quando visitou o Kosovo mostrou-se solidário com as queixas dos Sérvios.

Nikos Economopoulos, Belgrado, Sérvios Nacionalistas, 1991

O Kosovo, como revelam as eleições do passado Domingo, tem um significado histórico para os Sérvios, pois foi a última região da Sérvia medieval a resistir ao avanço dos Turcos no ano 1389.
Em 89 Milosevic era eleito presidente da República Sérvia. Nesse ano a queda do muro de Berlim punha a descoberto a caótica economia da Europa Central e de Leste e surpreendeu os mais cépticos. A transição foi difícil para todos, mas a Jugoslávia, com um sistema federal que entrara num impasse, iniciava uma guerra civil sangrenta com os diversos estados a reclamarem a sua independência. A igualdade federal que Tito fizera prevalecer estava agora desmoronada.
A ocupação do Kosovo, pela tropas da NATO, em Março de 99, foi o princípio do fim de Milosevic, que perderia as eleições no ano seguinte.

Josef Koudelka, Belgrado, manifestação de estudantes contra o regime de Milosevic, 2000

Se hoje a paz regressou aos Balcãs, a questão do Kosovo, está por resolver, e as eleições de Domingo passado na Sérvia foi vista pelos comentadores como um referendo: querem os sérvios ficar presos ao Kosovo ou avançar para a União Europeia?
O Partido Democrático, pró-europeu de Boris Tadic, o vencedor das eleições, mas sem maioria, enfrenta a dificuldade em formar um governo. Se em 2000, a Sérvia manifestava-se contra o regime de Milosevic,

Thomas Dworzak, Belgrado, poster de Milosevic, 2001

Thomas Dworzak, Belgrado, Milosevic arrest, 2001

agora o Partido Socialista fundado por ele, é essencial para a coligação que se vier a efectuar, mas ambos os partidos não aceitam que Belgrado desista do Kosovo.

O Kosovo, como André Malraux bem identificou nos anos 60, é a Argélia dos jugoslavos.

Carlos Miguel Fernandes, Belgrado, Fortaleza

Mas a Aurora, uma verdadeira Aurora, podemos nós perguntar, como na canção de “Jutro”, onde está?

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