sexta-feira, dezembro 08, 2006

A fotografia "humanista". À volta de Izis, Boubat, Doisneau, Ronis....

Em França, terminada a 2ª guerra mundial, uma geração de fotógrafos, aos quais chamaram “humanistas”, fixaram nas suas fotografias os acontecimentos mais banais do dia a dia, o absurdo, o amor, as festas..., enfim o testemunho de um tempo. O simples deambular nas ruas era para eles o seu verdadeiro projecto fotográfico.

Ilse Bing, 1952, Deux écoliers à L'Odéon
Janine Niépce, 1957, Le chat de la Concierge

Depois da extensa experimentação abstracta e surrealista da década anterior, os fotógrafos regressavam ao real, a pintura também já passara pelo mesmo. No pós-guerra, a França debatia-se com grandes privações, tinha ficado sem reservas monetárias e um défice de milhões na balança de pagamentos. Recebia dos Estados Unidos crédito para a compra de carvão, alimentos e matérias-primas, mas essa ajuda não permitia mais do que a sua sobrevivência. Contudo, a boa disposição do povo, depois da libertação era visível, sobretudo nas festas populares, como a véspera do 14 de Julho. Grupo de jovens dançavam na rua, radiantes. Qualquer descrição literária não podia ser mais real do que esta fotografia de Willy Ronis,


Willy Ronis, Chez Maxe,Nogent, 1947

Mas com a economia de rastos a turbulência política não dáva tréguas e seguiram-se anos de greves constantes.

Willy Ronis, Distribution de bulletins de grève, Paris 1947

Os franceses só veriam melhores dias a partir de 1949, altura em que a execução do plano Marshall, foi suficiente para arrancar com a economia. Seguiram-se os anos de prosperidade económica e do “baby boom” europeu. Com o crescimento da população a França debatia-se com uma grave crise habitacional. Os fotógrafos pressentem que grandes alterações urbanas estão iminentes. Tal como Atget, que fotografou o que em breve desapareceria na cidade de Paris, (Atget nunca fotografou a Torre Eiffel), os “humanistas” fotografaram a vida das pessoas nos seus bairros, antes de partirem para o inferno dos HLM (Habitation a Loyer Moderé), os novos edifícios que o Estado edificava para o alojamento em massa.








Jean Lattes, Scarcelles. Famille devant être enfin relogée dans une HLM, 1958


Jean-Phillippe Charbonnier, Le scandale des mal-logés. La Courneuve, 1952

Os princípios modernos de arquitectura, definidos na Carta de Atenas, em breve iriam ser erróneamente aplicados em França a uma escala inédita. Hoje sabemos as consequências.

No pós-guerra, os livros ilustrados com fotografias eram raros, e eram poucas as editoras que se lançavam nessa aventura. Felizmente houve excepções.A Guilde du Livre de Lausanne foi um fenómeno impressionante pelo seu sucesso comercial. Em 1949, a Guilde edita o seu primeiro livro de fotografias, “La Banlieue de Paris” com fotografias de Robert Doisneau acompanhado de um texto de Blaise Cendrars. O livro já tinha sido editado por Pierre Seghers, mas tinha sido um fracasso comercial. Não era o Paris turístico dos monumentos e bairros pitorescos. Doisneau fotografa as pessoas dos subúrbios, onde ele também sempre viveu. Numa referência à fotografia de Doisneau, Cendrars escreve o seguinte,

“regardez le visage des gens dans le métro d’Anthony ou de Sceaux. Qu’ils sont gentils et doux ces petits Français...”. (La Banlieue de Paris, Robert doisneau, 1949)


E continua, “...mais le génie moderne de Doisneau l’a poussé à suivre comme un voleur cet ouvrier à la descente du train.....pour surprendre cet ouvrier, chez lui, en train de planter son rosier avec amour”. (La Banlieue de Paris, Robert Doisneau, 1949)

No 1º trimestre de 1983, a revista “Les Cahiers de la Photographie”dedica a sua edição aos fotógrafos “humanistas”. Na mesma altura a Biblioteca de Paris apresentava uma exposição do Grupo dos XV, do qual faziam parte a maioria destes fotógrafos. Alain Fleig, é um dos críticos mais severos. Para ele, a visão do mundo dos “humanistas” é retrógada, olham para o passado e recusam o presente. Estes fotógrafos “poetas” de um mundo idealizado, e não real, não actuam sózinhos, o equivalente se passa no cinema e na literatura, continua Fleig. No cinema os filmes “Juliette” (1951) de Carné, “Le Fleuve” (1951) de Jean Renoir ...contrastam com o novo élan do néorealismo italiano, e na literatura Cendrars, Prevert, Mac Orlan... que escrevem os prefácios dos livros fotográficos, estão socialmente mortos. A realidade do momento não se exprime nestas obras. “L’enorme changement social qui s’opère alors, nul ne semble y participer: on regarde avec regrets les derniers fortifs disparaitre sous les HLM. On ne veut pas voir que les anciens mauvais garçons romantiques sont devenus des blousons noirs,...” escreve Fleig. Na actualidade a crítica aos “humanistas” continua, no seu site Paris-Art , André Rouillé, em Novembro no seu editorial semanal, escreve que já chega dessa fotografia nostálgica. Já ninguém aguenta Doisneau, Boubat, Izis, Ronis... e o Mois de la Photo deste ano está cheio desses fotógrafos, refere Rouillé. Para ele, esta visão nostálgica e idealizada do passado tem um sentido político, serve para obscurecer a realidade actual, o desemprego, os sem abrigo, todos os problemas sociais actuais.

Regressemos à sala de exposição do BnF.

Na altura os fotógrafos sobreviviam vendendo os seus trabalhos para as revistas, jornais, trabalhos publicitários (calendários, postais, cartazes...). Na Europa, a fotografia ainda não entrara nos museus e galerias, ninguém ainda imaginava comprar fotografia como se de uma obra de arte se tratasse. Os “media” tinham o poder, e exigiam fotografias que o público gostasse. Os casais de namorados ao longo do Sena eram o “cliché” que os soldados americanos levaram de regresso a casa.


Na exposição, uma dupla página da Life, de Junho de 1950, tem como sub-título: “ In Paris Young lovers kiss wherever they want to and nobody seems to care”.

A hoje célebre fotografia de Doisneau, “Le Baiser de l’Hôtel de ville” que foi encenada, o casal que se beija são figurantes, está no meio de tantas outras. Era mais uma. Anos mais tarde Doisneau disse numa entrevista, “não me sinto confortável a fotografar pares a beijarem-se, normalmente são amantes”. Hoje, o poder passou dos "media" para os coleccionadores.

A exposição acentua e bem esta característica comum dos fotógrafos “humanistas”, a de que todos trabalhavam quase exclusivamente para a imprensa, quer estrangeira, Life, Look,... quer para as revistas que surgiam na altura em França, Paris-Match, Point de Vu, Réalités, Messieurs...salvo os cartazes publicitários, tudo ainda era a preto e branco. Eram os últimos tempos áureos das revistas, pois a televisão vinha já a caminho As fotografias que hoje o público conhece, e que Rouillé já não aguenta, não estão expostas nas paredes como se fossem obras de arte, pelo contrário, mostram onde foram publicadas, a sua banalidade, no final jornais e revistas vão parar ao lixo. E com esta ideia de não querer elevar a arte todos estes documentos, o BnF mostra o que tem em espólio, os cartazes, calendários, agendas, capas de discos, com fotografias dos “humanistas”. Muitos dos fotógrafos expostos não são conhecidos, e muitas fotografias nunca entraram nos museus e galerias.

Em Novembro do ano passado, os subúrbios de Paris incendiaram-se, e o mundo através dos noticiários ouvia e via pela primeira vez locais como Clichy-sous-Bois, Seine-Saint- Denis, La Courneuve, Aulnay-sous-Bois....Na nossa televisão numerosos foram os debates e de repente toda a gente parecia conhecer esses subúrbios.

Por coincidência, a Cinemateca na sua programação sobre os grandes estúdios, passava nesse mesmo mês, Les filmes de la Pleiade. “L’amour existe” (1960) de Maurice Pialat, foi um deles. Filme documental, movimenta-se entre Paris e os subúrbios, mostrando os sinais de alienação pessoal e social da classe operária que para lá foi habitar. No início, antes da invasão do betão, Pialat filma as casas individuais com as suas pequenas hortas, tal como na fotografia de Doisneau onde vemos o operário a plantar a sua roseira. Os interiores, a cozinha onde se passava a maior parte do tempo, os nomes das casas “Moi et Lui”, para em seguida filmar as casernas do betão armado. Prédios despersonalizados, com janelas cada vez mais pequenas, em que no interior quase não vemos o exterior. Em simultâneo com as imagens ouvimos os comentários de Pialat na voz de Jean-Loup Reynold “ mas o que nos serve olhar para o exterior se nada há para olhar”. À noite, com os apartamentos iluminados, Pialat mistura os diversos sons provenientes de todas aquelas “máquinas de habitar”. Pialat ressalta a perca de individualidade do “Moi et Lui” para o mundo feroz e impiedoso da habitação colectiva.

Não deveriamos olhar para o “Moi et Lui” dos “humanistas”, desse mundo real que eles pressentiram terminar e tirar ilações?

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