segunda-feira, outubro 16, 2006

Sobre Fotografia Documental

O documentário regressou. O cinema, a fotografia e outras artes visuais retomam o documentário nas suas práticas. Os êxitos de bilheteira das 3 edições do Doclisboa, festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa, são prova do interesse crescente disso mesmo, no caso por um cinema independente e alternativo.
A escolha da fotografia que o cartaz apresenta neste festival, tirada em Portimão no ano de 1957 por Gérard Castello Lopes, surpreende num país onde a cultura fotográfica se centra sobretudo nas obras contemporâneas. Nesses anos os fotógrafos retratavam o que o cinema documental hoje filma, as pessoas e as suas relações na vida real.
Tudo isto me levou a pensar se o documentário também é "assunto" ao nível da fotografia.
Recuemos à década de 1980 para entendermos quando e como o documento entrou em crise. Documentário é um termo recente para a idade que a fotografia já tem, e em consequência as opiniões divergem quando se quer definir fotografia documental. Contudo, até à década de 1980 a fotografia documental tinha como principal função o testemunho. Os fotógrafos, com o poder excepcional de documentação que a fotografia lhes permitia, registavam todos os acontecimentos. Carmel Snow, editora da revista Harper's Bazaar, costumáva dizer a Cartier-Bresson qualquer coisa no género: meu amigo desça à rua e vá ver o que se passa. De facto na altura a fotografia tinha com o real uma relação única que bastava ir à rua munido de máquina, observar e tirar.
Este modelo vacila quando o documento deixa de ser a reprodução exacta da realidade e a televisão passa a ser a janela do mundo. O documentário clássico entra em crise mas simultaneamente surgem outros modelos. São estes que vamos olhar.
Raymond Depardon, fotógrafo e realizador (o Doclisboa de 2005 apresentou a segunda parte da sua trilogia "Profils Paysans"), descreve essa sensação simultânea de morte e renascimento na sua Correspondance Newyorkaise, conjunto de fotografias de Nova Iorque acompanhadas de um texto seu e publicadas no Libération durante o verão de 1981. Era tempo de enterrar o "instante decisivo" e inventar uma nova fotografia, a "photographie du temps faible", a fotografia de todos os momentos, mas para isso Depardon sabe que é necessário reaprender a olhar. Gérard quando retoma a fotografia, deixa para trás a tradição humanista que o embalou no início.
Mas o que mudou tão radicalmente? A sensação de que tudo tinha sido fotografado. Bons fotógrafos perceberam isso. O Livro Minamata, (1975) foi o fim de um ciclo para W.Eugene Smith. Robert Frank depois de The Americans (1959), não volta à estrada para os fotografar e envereda pelo cinema. A revista LIFE, publicada entre Novembro de 1936 a Dezembro de 1972 morre com 36 anos. Se nos anos aúreos de 1950 tinha problemas com excesso de publicidade antes de encerrar tinha o problema inverso. A televisão é impiedosa.
Agora é a linguagem visual utilizada pelos media, cada vez mais complexa, que serve de fonte de reflexão. Hoje percepcionamos o mundo quase exclusivamente pelas imagens dadas pela televisão, publicidade, internet...e consequentemente a percepção que temos do mundo mudou, o real passou a ficional. A experiência directa da realidade já não serve de estímulo, agora é a vez da ficção. Curioso, o termo documentário foi utilizado pela primeira vez por um realizador para designar os filmes de não ficção.
Perguntávamos se a fotografia documental é "assunto". Ao entrar no circuito artístico das galerias de arte e museus a resposta é clara. Hoje a fotografia documental é feita para se adaptar a estes espaços, outrora revistas e livros foram a sua forma de divulgação.
Mas está ou não em crise a fotografia documental? Comecemos com Jeff Wall.
Dead Troops Talk, de Jeff Wall é um trabalho de estúdio que reproduz num exercício exaustivo de verosimilhança a atmosfera agonizante das tropas russas na guerra do Afeganistão. Por breves instantes o espectador é induzido a presenciar uma cena do real. O cenário torna-se quase um documento da emboscada de que foi vítima o exército vermelho e que se desenrolou em Moqor no Inverno de 1986. (Como é referido na fotografia). A encenação é a forma escolhida para representar a guerra. Wall faz um cliché das fotografias de guerra publicadas nos jornais. Em Dead Troops Talk cada actor interpreta um papel. Os diversos sentimentos que a vivência de uma guerra provocam estão aí representados, loucura, desespero, agonia, medo. A barbárie da guerra é apresentada numa só imagem. Olhemos agora para a fotografia do fotojornalista Nicolas Asfouri da AFP que nos dá um fragmento da guerra, as tropas em repouso no Iraque e publicada num jornal nacional.
Numa primeria análise parecem-nos semelhantes, não só pelo seu conteúdo, retratam cenas de guerra mas também pela sua forma, ambas sem linha de horizonte. A grande diferença estará na veracidade de uma e encenação da outra? Qual das duas nos dá a conhecer melhor os cenários de guerra?
Longe de negar a fotografia documental, Wall cria uma nova alternativa. Se a presença do fotógrafo em campo era primordial para credibilizar a fotografia documental, Wall alarga o horizonte propondo uma fotografia documental baseado na encenação.
A fotografia de Asfouri dá-nos um fragmento da guerra, e fragmento do real foi o que sempre se pensou da imagem fotográfica. O que é que efectivamente hoje interessa mostrar, fragmentos do real que pela sua descredibilização e banalização já ninguém vê?
A fotografia de Jeff Wall não quer reproduzir o real mas antes tornar visível o que se passa no mundo. De forma criativa representa os conflitos mundiais sem recorrer ao real, exigindo ao espectador uma interacção com a obra.. O seu trabalho em caixas de luz de grande formato, semelhante às caixas de publicidade, é divulgado em galerias e actualmente fazem parte de muitas colecções. Mas pode a nova fotografia documental ultrapassar o mito do "ter estado lá"? (continua).


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