Ontem, Domingo, a Kgaleria, numa iniciativa que é de louvar, convidou Horacio Fernández para falar sobre “As linguagens actuais da fotografia documental”. Durante quatro horas e meia, num Domingo de escaldar, o público não arredou pé e nem deu pelo tempo passar, no fim, à laia de desabafo Fernández confessou, “quatro horas e meia é pouco tempo para mostrar o que queria”.
Fernández abordou as novas linguagens da fotografia documental, mas podemos recuar no tempo, à República de Weimar, para percebermos a essência do que Fernández nos transmitiu.
Terminada a primeira guerra mundial, com a abdicação do Kaiser, nascia na Alemanha, 1919, a primeira República, a República de Weimar. Os vencedores da guerra, assinavam em Versalhes um Tratado, cujas consequências depressa levaram a nova República para o caos. As pesadas indemnizações, que foram obrigados a pagar, conduziram o país a uma hiper inflação. Economicamente de rastos, a pobreza alastrou-se, e o nível de vida da sociedade alemã baixou. Nesses tempos difíceis, de pobreza generalizada, a violência política invadiu as ruas. Sequiosos de ordem e de um melhor nível de vida, foi fácil ao autoritário Hitler tomar o poder. O fotógrafo August Sander, coleccionador obsessivo, atraído pelas diferenças, fotografou todos os rostos da sociedade de Weimar. Nas suas fotografias, Sander informa-nos somente do ano e a profissão do fotografado.
Olhemos então para o notário que deixou Sander fotografa-lo com o seu cão à porta de sua casa.

August Sander, Notário
Com a sua postura direita, percebemos que o notário exerce uma profissão de elite, que impõe respeito e ele, uma pessoa digna de merecer esse respeito. Observemos agora os detalhes - o sobretudo, que é o mais eloquente. Pelo corte, percebemos que em tempos foi um casaco elegante, mas agora, já sem forma, o notário veste-o, porque provavelmente não pode comprar outro, mas preserva a postura, como se nada tivesse mudado. Para ele, a sua profissão continua a ser elitista, embora tudo à sua volta possa ter desmoronado.
Nesta fotografia o sobretudo dá-nos imensas “pistas”, como gosta de dizer Fernández, “pistas” que permitem a cada um de nós fazer a interpretação que quisermos, pois nada nos diz que o notário esteja à porta de sua casa, que o cão lhe pertence, que não tem um sobretudo melhor, que agora vive com menos posses porque o seu país vive momentos difíceis e que a profissão que ele exerce é para ele dignificante e que ele quer preservar que a respeitem. A riqueza do trabalho de Sander reside precisamente nesta abertura, em oposição, como diz Fernández, às fotografias fechadas do fotojornalismo, em que a ideia e a mensagem do fotógrafo é totalmente visível, não deixando qualquer margem ao observador. Sander não nos impõem a sua visão, antes nos deixa, “pistas”, “traços”, “rastos”, e é a partir deles, que cada um de nós constrói a realidade de uma sociedade, de um país, a verdadeira Alemanha na época da República de Weimar. Nos milhares de rostos que Sander fotografou, o observador é atraído pelas diferenças: pasteleiro, desempregado, deputado, artista, agricultores, os dois pugilistas…diferenças que tanto irritaram Hitler, que queria um país de uma só raça, uma raça superior - a raça ariana, e por isso mandou incendiar o seu estúdio.
Fernández falou e mostrou imagens da fotografia documental actual, não nos falou em Sander, nem era esperado que falasse, mas Sander deixa-nos as “pistas”, “traços”, “rastos”, para o documentário actual, para a fotografia de Guy Tillim, um dos fotógrafos contemporâneos que Fernández mais admira, e que no Congo, fotografa as “pistas”, “traços”, “rastos” da colonização Belga.

Guy Tillim, Congo Democratic Voting, Kinshasa, Julho 2006

Guy Tillim,Congo, Kinshasa suburb, Julho 2006
Em Joanesburgo, num outro trabalho, Tillim fotografa casas ocupadas deixadas pelos antigos proprietários. Sempre com a permissão de quem fotografa, em oposição às imagens tiradas à “sorralfa” de Cartier-Bresson e de tantos fotojornalistas, Tillim identifica o lugar e as pessoas, o resto fica para o observador divagar.
Nesta imagem, diz Fernández,

Guy Tillim,Mbulelo's bar, Joel Road, Berea, 2004
a rapariga vestida com a farda de uma boa escola destoa, sobretudo com este homem sentado à direita que parece um sem abrigo. Tillim não pediu à criança para se retirar, “poderia tê-lo feito, para mostrar melhor a pobreza, mas não o faz”. Tillim não nos impõem a sua visão, e a riqueza das suas fotografias, como em Sander, está na abertura que deixa ao observador.
A abordagem de Tillim, “um dos melhores fotógrafos documentais da actualidade”, diz Fernández, foi uma de muitas e diferentes abordagens possíveis da actual fotografia documental, como iremos ver num outro post.
Nota: Horacio Fernández é professor de fotografia na Faculdade de Belas Artes de Cuenca e entre 2004 e 2006 foi comissário geral de PHotoEspana mas também comissariou muitas outras exposições. Mexicana, Fotografia Moderna do México 1923-1949(IVAM Valência 1998), foi para mim uma das melhores que já vi até hoje.
Sem comentários:
Enviar um comentário