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Jean-Luc Godard na sua Histoire(s) du Cinéma (1991-1997), por três vezes se questiona se o cinema é “herança da fotografia?”, e por três vezes a sua resposta é sim. Godard tem razão ao assinalar a separação que ainda hoje persiste entre cinema e fotografia.
Mas será que faz sentido, essa separação, como se de dois territórios distintos se tratasse?
Durante o mês de Janeiro a Cinemateca vai exibir uma retrospectiva de autor, Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), e Aurora, (Sunrise), de 1927, uma das obras primas da História do cinema, passará nos dias 26 e 29.
Aurora, é um dos filmes mais fotográficos que já vi. Ao longo da História do cinema, algumas das suas obras primas foram provocadas por olhares fotográficos. Blow-Up (1966) de Antonioni, La Dolce Vita (1959) de Fellini e mais recentemente os filmes de Wim Wenders. Stanley Kubrick uma vez afirmou: para fazer um filme, não é preciso saber quase nada, mas é preciso saber fotografia.
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Blow-Up, M. Antonioni, 1966
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Studio August Sander, c.1930
La Dolce Vita, F.Felini, 1959
Pouco tempo depois da estreia de Aurora, a Warner lançava o primeiro filme falado The Jazz Singer. Primeiro filme de Murnau em Hollywood, Aurora não foi o êxito de bilheteira que a crítica esperava. Para Murnau é a morte prematura do cinema mudo. Um pouco antes de morrer, Murnau escreve o seguinte: “O filme sonoro significa um grande progresso no cinema. Infelizmente vem cedo demais: começavamos agora a encontrar uma via para o cinema mudo, valorizavamos todas as possibilidades da camara...”.
A fotografia, na sua Alemanha, passava também por um período de extensa experimentação. Nos anos 20, a fotografia via-se subitamente prestigiada pelas avant-gardes e os meios intelectuais alemães. Uma nova mobilidade do olhar com perspectivas abruptas descendentes/ascendentes, as luzes, os reflexos, as sombras... provocavam um efeito de desfamiliarização do objecto na imagem. A máquina fotográfica era uma verdadeira “prótese visual”, capaz de alargar a visão do homem, e no filme, essas novas percepções que a fotografia revelara, são uma constante.
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Umbo, 1928
W. Peterhans, 1929
O tema de Aurora, um drama conjugal, adaptado da novela de um seu compatriota, Hermann Sudermann, é transformado numa obra prima. Se o drama conjugal é o tema, o antagonismo entre campo e cidade é o centro do filme. Da paisagem bucólica, romântica do campo, somos transportados, de eléctrico, para a vida alucinante da cidade. E é na cidade que o filme é fotográfico.
A visão de Murnau assenta no meio artístico e intelectual da capital, Berlim, paradigma da cidade moderna. As diversificadas e contraditórias formas de vida que aí se cruzavam, a sua vida agitada, fascinaram e serviram de tema a Murnau e todos os outros artistas. A “vamp” do filme vem da cidade, local de perdição...
A visão de Murnau assenta no meio artístico e intelectual da capital, Berlim, paradigma da cidade moderna. As diversificadas e contraditórias formas de vida que aí se cruzavam, a sua vida agitada, fascinaram e serviram de tema a Murnau e todos os outros artistas. A “vamp” do filme vem da cidade, local de perdição...
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Adolf Uzarski, Cabaret Café, 1928
Nikolaus Braun, Cena de rua em Berlim, 1921
Murnau, capta na cidade, fragmentos da vida urbana, o trânsito,
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Gyorgy Kepes, 1930
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Anton Stankowski, 1929
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personagens anónimas que andam nas ruas,
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Martin Munkacsi, n.d.
Friedrich Seidenstucker, 1925
os reflexos dos espelhos no barbeiro,
Hans Finsler, n.d.
as sombras (transformando através delas o camponês numa personagem aterradora), ...tudo motivos da fotografia moderna.
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Edmund Kesting, 1930
Heinrich Heidersberger, n.d.
Mas é no salão de chá, local onde o casal se reconcilia, que Murnau mais utiliza o que a fotografia revelara. Os reflexos dos vidros do salão de chá, a sua transparência e sobreposição fazem-nos perder a referência, estamos no interior ou exterior? Essa ambiguidade e confusão de planos gerando uma espécie de abstração e movimento, são verdadeiramente os motivos previligiados da fotografia moderna.
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Umbo, Store in Berlim,1929
Willy Zielke, n.d.
Willy Zielke, fotógrafo polaco que emigra para a Alemanha, referia na época, que o que lhe interessava fotografar eram os jogos de transparência, de reflexo, de difracção...as composições abstractas, criadas pela memória imediata de um acontecimento luminoso. Em 1932, Zielke também envereda pelo cinema e é o produtor em 1936 do filme Olympiad de Leni Riefenstahl.
Mas se há filmes fotográficos, há livros de fotografias que são cinematográficos. “Lisboa, Cidade Triste e Alegre” de Victor Palla e Costa Martins é um exemplo. Aguardem então o próximo post
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